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A irreverência sempre foi marca
registrada do Carnaval, notadamente do Carnaval carioca. Por isso, soa um tanto
insólito o bloco dos que defendem a exclusão de canções como “Cabeleira do
Zezé”, “Maria Sapatão", “O Teu Cabelo Não Nega", “Índio Quer Apito",
“Mulata Bossa Nova", sob o argumento de que são ofensivas e perpetuam
preconceitos. A ala dos politicamente corretos quer banir também algumas
fantasias, como as de índio, baiana e nega maluca, consideradas desrespeitosas.
Sobrou até para a purpurina, acusada de provocar danos ao meio ambiente —agora,
recomenda-se um tipo de brilho comestível, usado na decoração de bolos e doces.
Autor de “Cabeleira do
Zezé", “Maria Sapatão" e “Mulata Bossa Nova", João Roberto Kelly
critica a patrulha e está surpreso com o alvoroço criado em torno dessas cantadas
desde que foram criadas: “Na minha opinião, a mulata é o tipo mais
representativo da mulher brasileira. Essa polêmica não combina com
carnaval". De fato, o carnaval, desde sua origem nas festas pagãs da
Antiguidade, sempre teve espírito libertário, com excessos, transgressões e
inversão de papéis. Isso se mantém até hoje, guardadas as regras de convivência
em sociedade. Marchinhas com frases de duplo sentido ou politicamente
incorretas são uma característica da folia. Importar idiossincrasias de outros
países pode acabar avacalhando traços importantes da cultura tupiniquim. Daqui
a pouco vão querer anular até o Aleijadinho, um dos mais importantes artistas
da História do Brasil.
Essa verve transgressora fica
patente não só nas letras das marchinhas, mas nos próprios nomes dos blocos: Calcinha
Molhada, Suvaco do Cristo, Perereka sem Dono; Balança Meu Catete, Pinto Sarado
e outros que são apenas alguns da lista de mais de 400 grupos que irão desfilar
em 17. O jeito irreverente está presente ainda nas fantasias. Por isso, não faz
sentido querer banir da folia figurinos de baiana, nega maluca e índio, três
tradições da folia. O que seria da Cacique de Ramos sem seus índios? E o desfile
da Beija-Flor, que este ano terá “Iracema" como enredo?
"O que há num nome?",
pergunta Shakespeare em "Romeu e Julieta". Muita coisa, segundo os
adeptos do politicamente correto, cujo vocabulário é cada vez mais imposto ao
cidadão comum. É um comportamento que supostamente não fere os sentimentos de
pessoas pertencentes a grupos marginalizados ou desavantajados. Surgiu nos
Estados Unidos, nação teoricamente de longa tradição de defesa dos direitos
humanos e, paradoxalmente, com uma longa história de preconceitos: nos EUA
floresceram a Ku Klux Kan, a Wasp (Branco, Anglo-Saxão e Protestante na sigla
em inglês) e muitas outras organizações voltadas para a promoção do preconceito
e da discriminação.
À medida, porém, que os grupos politicamente
corretos fizeram valer seus conceitos, o vocabulário teve de mudar. Muita
coisa, diga-se, melhorou. Entretanto, como sói acontecer nestes casos, o
pêndulo oscilou para o lado oposto, e o que era uma sadia reação ao preconceito
tornou-se caricatural. Muitas universidades até publicaram manuais ensinando
não apenas como falar sem ferir suscetibilidades, mas também como agir em
situações potencialmente perigosas.
Em um ótimo artigo exatamente
sobre esse tema, publicado pela revista Época sob o título "Réquiem para
Maria Sapatão", o jornalista Guilherme Fiuza conclui que "o bom dessa
revolução (do politicamente correto) é que ela é prática —você declara conceitos
de 1,99 Real e triunfa. Sendo progressista, portanto uma pessoa boa, portanto a
favor dos fracos, portanto guardião do que é nosso, você pode roubar a
Petrobrás sem deixar de ser do bem. Sendo contra o Cunha (lembra-se dele?),
você pode virar herói da resistência democrática contra o golpe —e se sua
posição favorecer a narrativa da quadrilha, ninguém vai nem notar".
Em resumo, o politicamente
correto implica uma questão moral e ética e está circunscrito a um determinado
contexto histórico —isto é, o que era politicamente correto ontem, pode não o
ser nos dias de hoje. Em muitos casos, é a expressão da revolta de segmentos
sociais e políticos marginalizados e/ou segregados em busca do respeito merecem;
traduz séculos de humilhação, opressão, sutil ou brutal, quando não
sanguinária. Que se revista de exagero é apenas compreensível. No futuro, o
vocabulário politicamente correto deverá ser olhado como o testemunho, curioso
talvez, de um momento de rebelião contra o status
quo.
Politicamente correto é uma expressão que foi apropriada pelas
elites burguesas e que pretendia renovar a filosofia ética com o objetivo de
balizar as relações sociais e políticas. Pessoalmente, penso que não existe
gente que adote o politicamente correto
que não seja estúpida, exceto quem tem a idade mental um guri de oito anos. Seria
possível transformar tudo em politicamente correto? “Sou uma moça preta, mas
linda, ó filhas de Jerusalém (...)" —esta frase está no cântico de Salomão
(livro da Bíblia cristã). A leitura que se faz é de que ser bela é privilégio
de mulheres brancas e a beleza numa mulher negra é uma exceção, né, não? Para
os politicamente corretos o ideal seria expurgar a frase do texto bíblico.
Luca Maribondo
Campo Grande | MS | Brasil
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