segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

"Sou preta, mas linda..."

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A irreverência sempre foi marca registrada do Carnaval, notadamente do Carnaval carioca. Por isso, soa um tanto insólito o bloco dos que defendem a exclusão de canções como “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão", “O Teu Cabelo Não Nega", “Índio Quer Apito", “Mulata Bossa Nova", sob o argumento de que são ofensivas e perpetuam preconceitos. A ala dos politicamente corretos quer banir também algumas fantasias, como as de índio, baiana e nega maluca, consideradas desrespeitosas. Sobrou até para a purpurina, acusada de provocar danos ao meio ambiente —agora, recomenda-se um tipo de brilho comestível, usado na decoração de bolos e doces.
Autor de “Cabeleira do Zezé", “Maria Sapatão" e “Mulata Bossa Nova", João Roberto Kelly critica a patrulha e está surpreso com o alvoroço criado em torno dessas cantadas desde que foram criadas: “Na minha opinião, a mulata é o tipo mais representativo da mulher brasileira. Essa polêmica não combina com carnaval". De fato, o carnaval, desde sua origem nas festas pagãs da Antiguidade, sempre teve espírito libertário, com excessos, transgressões e inversão de papéis. Isso se mantém até hoje, guardadas as regras de convivência em sociedade. Marchinhas com frases de duplo sentido ou politicamente incorretas são uma característica da folia. Importar idiossincrasias de outros países pode acabar avacalhando traços importantes da cultura tupiniquim. Daqui a pouco vão querer anular até o Aleijadinho, um dos mais importantes artistas da História do Brasil.
Essa verve transgressora fica patente não só nas letras das marchinhas, mas nos próprios nomes dos blocos: Calcinha Molhada, Suvaco do Cristo, Perereka sem Dono; Balança Meu Catete, Pinto Sarado e outros que são apenas alguns da lista de mais de 400 grupos que irão desfilar em 17. O jeito irreverente está presente ainda nas fantasias. Por isso, não faz sentido querer banir da folia figurinos de baiana, nega maluca e índio, três tradições da folia. O que seria da Cacique de Ramos sem seus índios? E o desfile da Beija-Flor, que este ano terá “Iracema" como enredo?
"O que há num nome?", pergunta Shakespeare em "Romeu e Julieta". Muita coisa, segundo os adeptos do politicamente correto, cujo vocabulário é cada vez mais imposto ao cidadão comum. É um comportamento que supostamente não fere os sentimentos de pessoas pertencentes a grupos marginalizados ou desavantajados. Surgiu nos Estados Unidos, nação teoricamente de longa tradição de defesa dos direitos humanos e, paradoxalmente, com uma longa história de preconceitos: nos EUA floresceram a Ku Klux Kan, a Wasp (Branco, Anglo-Saxão e Protestante na sigla em inglês) e muitas outras organizações voltadas para a promoção do preconceito e da discriminação.
À medida, porém, que os grupos politicamente corretos fizeram valer seus conceitos, o vocabulário teve de mudar. Muita coisa, diga-se, melhorou. Entretanto, como sói acontecer nestes casos, o pêndulo oscilou para o lado oposto, e o que era uma sadia reação ao preconceito tornou-se caricatural. Muitas universidades até publicaram manuais ensinando não apenas como falar sem ferir suscetibilidades, mas também como agir em situações potencialmente perigosas.
Em um ótimo artigo exatamente sobre esse tema, publicado pela revista Época sob o título "Réquiem para Maria Sapatão", o jornalista Guilherme Fiuza conclui que "o bom dessa revolução (do politicamente correto) é que ela é prática —você declara conceitos de 1,99 Real e triunfa. Sendo progressista, portanto uma pessoa boa, portanto a favor dos fracos, portanto guardião do que é nosso, você pode roubar a Petrobrás sem deixar de ser do bem. Sendo contra o Cunha (lembra-se dele?), você pode virar herói da resistência democrática contra o golpe —e se sua posição favorecer a narrativa da quadrilha, ninguém vai nem notar".
Em resumo, o politicamente correto implica uma questão moral e ética e está circunscrito a um determinado contexto histórico —isto é, o que era politicamente correto ontem, pode não o ser nos dias de hoje. Em muitos casos, é a expressão da revolta de segmentos sociais e políticos marginalizados e/ou segregados em busca do respeito merecem; traduz séculos de humilhação, opressão, sutil ou brutal, quando não sanguinária. Que se revista de exagero é apenas compreensível. No futuro, o vocabulário politicamente correto deverá ser olhado como o testemunho, curioso talvez, de um momento de rebelião contra o status quo.
Politicamente correto é uma expressão que foi apropriada pelas elites burguesas e que pretendia renovar a filosofia ética com o objetivo de balizar as relações sociais e políticas. Pessoalmente, penso que não existe gente que adote o politicamente correto que não seja estúpida, exceto quem tem a idade mental um guri de oito anos. Seria possível transformar tudo em politicamente correto? “Sou uma moça preta, mas linda, ó filhas de Jerusalém (...)" —esta frase está no cântico de Salomão (livro da Bíblia cristã). A leitura que se faz é de que ser bela é privilégio de mulheres brancas e a beleza numa mulher negra é uma exceção, né, não? Para os politicamente corretos o ideal seria expurgar a frase do texto bíblico.

Luca Maribondo

Campo Grande | MS | Brasil

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