sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Como é mesmo?!


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Se há algo realmente incômodo na leitura de jornais, revistas e sites e na audiência de tvs e rádios é a prática de repórteres, redatores, ancoras e locutores em geral de explicar o significado de algumas palavras, talvez porque as considerem “difíceis”, complexas, intricadas (intrincadas), obscuras ou sei lá o quê. Um dos exemplos mais sobejos é doloso, a rainha das explicações. Não tem vez que alguém na mídia cite a palavra que não a traduza a nós ignorantes: “com a intenção de matar”.

Não consigo compreender quais são os critérios adotados para essa prática. Há muito tempo —há anos, calculo eu— tento descobrir quais são os critérios da mídia pra “traduzir” para nós, ignorantes leitores, ouvintes, telespectadores, o significado de algumas palavras. Certamente não é a dificuldade que temos em entendê-las. Sempre digo que não existem palavras "difíceis", mas palavras conhecidas e desconhecidas.

No dia-a-dia a gente lê e ouve milhares dessas palavras na mídia. Neste final de semana escolhi alguma aleatoriamente; terraplenagem (desta há ocorrências com a grafia incorreta de terraplanagem), predecessor, convescote, lábaro, griffe (pergunte a dez pessoas, onze não sabem o significado de grife), impeachment (encontrei a grafia errada impeachement inúmeras vezes), abdução (que muita gente pensa que tem a ver com seres de outros planetas), clivagem, exotérico (na maioria das menções o redator está confundindo com esotérico, que é exatamente o contrário), intracraniana, epifania, na reportagem de um telejornal. Nenhuma delas tinha o significado entre parênteses, apesar de serem palavras de uso pouco comum.

Entretanto, palavras de uso mais corriqueiro ganharam tradução nos textos dos jornais e revistas. Sempre que se fala de política na Alemanha escreve-se e fala-se a palavra “chanceler” à exaustão. E entre os parênteses lá está a indefectível tradução: premiê ou primeiro ministro. Na Globo, sequer usam o termo chanceler, mas primeira-ministra, sabe-se lá porque. Qualquer criança de primeiro grau sabe que, primeiro de tudo, chanceler é o chefe de governo ou primeiro-ministro em muitos países, inclusive Alemanha, e, depois, ministro das relações exteriores ou dos negócios estrangeiros, em outros países, inclusive Brasil. Interessante notar que a mídia não traduz “Secretário de Estado” (EUA) para chanceler. Afinal, o cargo equivale a ministros das relações exteriores em outros países.

Em priscas eras, nos tempos da Guerra Fria, tinha “a” KGB, que a mídia nos informava ser a polícia secreta soviética. E aí cometia logo dois erros de uma só vez: primeiro, que não era simplesmente a polícia secreta coisíssima alguma, mas algo bem mais complexo, quase um Estado dentro do Estado; depois que KGB significava Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti (Комите́т Госуда́рственной Безопа́сности) —em português, Comitê de Segurança do Estado—, e, se era um comitê (vocábulo masculino), KGB não deveria ser “a” KGB, mas “o” KGB, certo?

Fico extremamente incomodado com a colocação do significado de algumas (muitas, na minha opinião) palavras entre parênteses ou de explicações como a da bomba atômica, até porque os redatores também se mostram muitas vezes bem ignorantezinhos. Me considero vilipendiado, achincalhado com essa atitude dos redatores, editores, copidesques, escrevinhadores, ou seja lá o que for, do jornal. Penso que estão subestimando minha sapiência, minha conhecença e minha inteligência. É como se me dissessem: veja, seu idiota!, como você é mesmo um iletrado, estou te dizendo o significado dessas palavras.

Tenho certeza de que não sou o único leitor, ouvinte e telespectador
que se sente desta maneira. Essa é uma atitude muito arrogante do jornal, que poderia ser solucionada de outras maneiras. Por exemplo: os jornais e revistas poderiam criar dicionários nos mesmos moldes dos manuais de redação, que seriam distribuídos aos distintos leitores. Claro que os dicionários teriam que ser tratados com mais cuidado, para evitar os erros.

Os manuais de redação são um caso à parte. Mas não pense que não aprecio os manuais de redação. Eles são meus guia de texto favorito. Tenho-os (juntamente com outras obras assemelhadas) sempre ao meu lado para me auxiliar quando redijo. Os pequenos erros existentes neles são perfeitamente perdoáveis —quem não erra, né? De vez em quando eu até me apanho escrevendo asneiras ensandecidas.

Mas nem eu escapo desses cacoetes jornalísticos. Edito o conteúdo de um site ligado ao meio ambiente. Dia desses, um dos redatores enfiou lá “sinuoso (cheio de curvas)”; não teve argumento para demovê-lo de que aquela era uma atitude arrogante. O mesmo redator, porém, escrevinhou “relicto” em outro texto postado no site —fiz uma rápida pesquisa, e descobri que, de cada dez pessoas, onze não sabem o que significa relicto. Mas ele não colocou nenhuma explicação pro leitor —e nem o Aurélio sabe da existência do vocábulo. Pode procurar.

Mas voltemos ao alfarrábio: que tal chamá-lo de Dicionário dos Ignorantes ou Pai dos Burros? Mas se o dicionário ficar muito caro (e vai ficar!), os jornais e revistas poderiam criar glossários ao final de suas edições, contendo aquelas palavras que os escrevinhadores do jornal consideram “difíceis” para seus desletrados leitores. Tenho até uma sugestão de título pro glossário: Painel do Analfabeto. Ou Acertamos (em contraposição ao "Erramos" existente em alguns veículos).

Por mais que lucubre sobre o assunto, continuo não compreendendo o porquê das acepções entre os parênteses. Elas me servem pouco, até porque eu não confio nos significados dados pelos jornalistas; prefiro recorrer aos dicionários, o que faço sempre que sinto necessidade. Considero a atitude desses jornalistas o supra-sumo da arrogância e uma forma estúpida de ignorância. Tenho a frase a seguir entre minhas anotações, mas não sei quem é seu autor: “a ignorância não se dá apenas pelo analfabetismo. Mas, também pela falta de conhecimento em saber distinguir e dar valor às sapiências alheias.” Ela define exatamente o que penso sobre o assunto.


Luca Maribondo
Campo Grande | MS | Brasil

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