[Por
conta do Dia Mundial de Combate à AIDS, comemorado em 1º de dezembro, fiquei
lucubrando a respeito da motivação de profissionais de comunicação,
principalmente jornalistas e publicitários, ao grafar a sigla aids com as
letras ou com a inicial maiúscula. Expressei minha dúvida no Twitter e logo
apareceu alguém que, presumo publicitário, explicando que "aids com a
letra 'a' em caixa alta é um método visual de chamar atenção em produtos de
mídia, e facilita a leitura cerebral". Ante a minha natural rejeição a tão
estapafúrdio argumento, o moço ainda complementou: "depende da sua
interpretação da frase, publicitários, designers e arquitetos também trabalham
com o subconsciente da pessoa".
O
ínclito "comunicólogo" comete algumas impropriedades em suas
explicações. Primeira, e mais grave: subestima minha inteligência e meus conhecimentos
de comunicação. Depois, fala em "leitura cerebral", uma obviedade
escandalosa, visto que não existe outro órgão no corpo humano que leia, fato
comprovado em 2006 por um grupo de cientistas franceses que conseguiu
identificar a região do cérebro indispensável para a leitura e demonstrar a
importância do inconsciente na percepção das palavras.
Pai dos inteligentes |
Aids
é uma sigla —e siglas configuram uma região sombria do idioma português (e de
outros idiomas também). Uma dessas confusões é confundir sigla com acrossemia, ou
acrônimo, redução de uma palavra ou conjunto de palavras às suas letras ou
sílabas iniciais. Há também a acrografia, que é a redução de uma expressão de
duas ou mais palavras ao conjunto de suas sílabas (ou elementos fônicos)
iniciais; e a braquigrafia, redução de um conjunto de palavras a uma só
palavra, que combina o processo de acrografia com sigla, obtendo-se seqüência
fônica aproximativamente enquadrada nos padrões fonológicos da língua em que
são criados. Em todos os casos, grafa-se em caixa alta apenas a primeira letra
—acrossemia: Petrobrás; acrografia: Sudene; braquigrafia: Funarte.
Acrossemia,
acrografia e braquigrafia diferem-se claramente de sigla, que é a redução de um
conjunto de palavras apenas às letras iniciais de cada palavra. Existem siglas
que são apenas soletráveis, tais como CIA, KGB (que quase todo mundo botava no
feminino, a KGB, quando deveria ser no masculino —e que está em desuso), cd,
DNIT, STF etc. As que são referentes a nome próprios, devem ser grafadas em
caixa alta. Há as siglas que são legíveis como palavras, tais como Vasp, aids,
ONU, Sesc etc. Nestas pode ser usar a regra de grafar apenas com a inicial
maiúscula as que têm mais de três letras e que são nomes próprios, com as
letras em caixa alta quando são três ou menos letras e são nomes próprios.
Não
há justificativa para se grafar com maiúsculas substantivos comuns —que, como
se sabe, escrevem-se com minúsculas, inclusive a letra inicial— representados
por bigla, trigla, sigla, acrograma ou abreviatura. Não se escreve Horse-Power
(cavalo-força), Policial Militar, Policial Rodoviário Federal, Compact Disc,
Acquired Immunideficiency Syndrome, Human Immunideficiency Virus, Televisão (o
receptor), Disc Jockey, Long-Play e tantas outras palavras e expressões
presentes no nosso dia-a-dia.
Logo,
não há justificativa para se grafar HP, PM, PRF, CD, AIDS ou Aids, HIV, TV ou
Tv, DJ e LP, mas hp, pm, prf, cd, aids, hiv, tv, dj e lp. “A quantidade de
litros de capacidade de um motor tem pouco a ver com sua potência em hp”; “O pm
surrou o bandido”; “O cd foi gravado com dinheiro do governo”; ”Pegou aids na
suruba”; “Mais gente contaminada pelo hiv”; e assim por diante. O caso da aids
é típico. Na imprensa escreve-se Aids ou AIDS, mas ninguém sai por aí
escrevendo sarampo, caxumba, pingadeira, dengue, zika etc., é ou não é? Siglas
e acrossemias em geral criam dificuldades para leitores e espectadores, porque exigem
ser decifradas.
Não
sou um defensor implacável da rigidez gramatical; pelo contrário, aprendi
escrevendo na mídia e, por isso, estou sempre buscando a simplificação, a
clareza, a concisão e a precisão. A linguagem, qualquer linguagem, é um meio de
expressão e de comunicação, e como tal deve ser julgada exclusivamente. Penso
que devemos respeitar algumas regras básicas da gramática para fugir dos
desacertos mais evidentes —a meu ver, a maioria das regras deve ser esquecida
ou automatizada a ponto de as usarmos sem perceber, isto é, com a mesma
naturalidade com que respiramos.
Há
mais ou menos trinta anos Luís Fernando Veríssimo escreveu que “a sintaxe é uma
questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não
necessariamente certo”. Na época, seus argumentos provocaram polêmica, mas não
é difícil concordar com o escritor gaúcho.
Mas
se as regras devem ser esquecidas ou abandonadas em favor das já citadas
simplificação, clareza, concisão e precisão, também não devemos abusar e partir
para a ignorância sem peias. Foi o mesmo Veríssimo quem afirmou: “A gramática
precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda”. Mas não devemos
abusar da violência nas surras, pois podemos aleijá-la ou até matá-la.
Portanto, perdão leitor pelos nossos erros.
“Ensinamentos”
como os do meu "professor" tuiteiro são perfeitamente dispensáveis,
pois quem não sabe, acredita. Preserve-nos da ignorância, professor... Talvez a
gente deva andar com um Hoauiss debaixo do braço —apear de suas quase 3.000 páginas
e quase 3kg— e sacá-lo rapidamente toda vez que alguém nos afrontar com a
incultura.Em
caso de dúvida, pergunte. Não é vergonha perguntar. Mas é vergonha ser
ignorante.
Luca Maribondo
Campo Grande | MS | Brasil
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