domingo, 15 de janeiro de 2017

Pior motorista do mundo

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Dia desses, um policial rodoviário federal dirigindo seu carro fora do horário de trabalho teve uma altercação com o condutor de outro veículo e, desatinado, crivou-o de balas. Como acontece na maioria dos casos de pessoas atingidas por tiros, o homem morreu. Não é todo dia que em Campo Grande as pessoas são assassinadas por conta de desavenças no trânsito da cidade, mas as desavenças são diárias.
Levantamentos estatísticos colocam a Capital de Mato Grosso do Sul no topo do ranking das cidades com pior trânsito do país. A conduta dos motoristas e motoqueiros da cidade mostra que são dotados de uma rudeza e falta de inteligência sem precedentes no Brasil. A fama dos campo-grandenses como maus motoristas não tem concorrência.
Os sinais de que algo está errado na maneira como se dirige na cidade são comprovados pelos números. Inúmeros estudos que analisam dados referentes a trânsito colocou a cidade no topo do ranking das capitais com as maiores taxas de mortes de jovens (na faixa dos 15 aos 24 anos) por acidentes de trânsito e transportes. A cidade tem uma das maiores frotas proporcional de motos do País, envolvidas na maior parte dos acidentes que ocorrem.
Casos recentes nos quais o trânsito foi cenário de explosões de fúria —como o caso do prf assassino— que terminaram em violência e morte provocam debates intensos sobre o comportamento dos campo-grandenses no trânsito e a incapacidade das autoridades de gerirem o sistema de circulação da cidade.
Apesar de mais evidente em casos de morte, a violência mais comum no trânsito de Campo Grande é a simbólica. Fazer uma conversão à esquerda numa pista de mão dupla sem ser —no mínimo— atacado a buzinadas ou ouvir vitupérios é missão impossível. Por conta de sua transformação em Capital há 37 anos, a cidade cresceu muito rapidamente e os acidentes de trânsito passaram a ser um dos primeiros e grandes problemas enfrentados pelo município e seus cidadãos. A cidade sempre foi um expressivo centro agropecuário e a junção do urbano com o rural foi uma experiência muito forte. As pessoas não estavam acostumadas com a velocidade que a modernidade e o crescimento de trouxeram.
A placidez do meio rural foi quebrada repentinamente pelo ritmo frenético e cosmopolita da transformação da cidade em capital. Agricultores e vaqueiros guiavam (e guiam) na zona rural com outro nível de contemplação. Ao chegar na cidade, ele se deparou com um tempo diferente daquele com o qual estava acostumado. Mas existe um arsenal de hipóteses para entender a violência no trânsito, uma delas é a incivilidade do povo sul-mato-grossense, que parece não haver se esquecido da chamada "lei do 44", ou autorização pra portar e usar arma de fogo.
Em Campo Grande muitos motoristas e até técnicos de trânsito evocam a “origem rural” do Estado para tentar explicar o caos no trânsito. Senhores de terras querem supostamente ter na cidade os mesmos privilégios de quando circulam em suas fazendas, geralmente em enormes camionetes. Frases do tipo “pode multar, que eu pago!” ou “você sabe com quem está falando?” são comuns na cidade. E o uso de carros mais caros e luxuosos parecem ser o salvo-conduto pra cometer todo tipo de arbitrariedade no trânsito.
Uma das grandes falhas no País é a inépcia das chamadas otoridades do trânsito e do sistema viário, precário, mal planejado e gerido, de fiscalização parca e manutenção mal executada. Há também a histórica disputa entre ricos e pobres: os mais abastados julgam que têm prevalência sobre os mais pobres, o que amplia a ocorrência dos acidentes de trânsito.
Vive-se na época da tolerância zero, em que o ego, não raro, fala mais alto que a razão. Em muitos casos, condutores com carros mais novos, mais caros e mais possantes se sentem no direito de passar por cima de tudo e de todos: desobedecem a sinalização, aceleram além da conta, não dão espaço para outros veículos e não usam os dispositivos de sinalização de seus veículos e, mesmo vendo gente nas faixas de pedestre, não param. Até nos locais onde existem semáforos e câmeras, se negam a parar. Vê-se até motoristas acelerarem ainda mais, olhando para frente e se fazendo de cegos.
É incrível, mas nota-se que, para muitos motoristas, parar o veículo para uma, ou mais pessoas atravessarem as vias públicas, é algo inconcebível. Muitos nem disfarçam a má vontade e o mau humor. Dá para constatar a hostilidade no olhar. Agem como se estivessem fazendo um favor em dar passagem.
Dito isso, pegue 850 ônibus cheios, velhos e fumegantes, 550 mil carros —alguns com mais de 30 anos de uso—, 30 mil vagas, milhares de caminhões, centenas de táxis, 850 mil pedestres e misture bem (não precisa bater, já que a maioria bate espontaneamente). Adicione 51.327 buracos, sinalização mal-ajambrada, guardas ineptos e corruptos. Leve tudo ao fogão das otoridades de trânsito e frite tudo em fogo alto. Em menos de dez minutos estará pronto o maior angu-de-caroço do mundo, que é o trânsito de Campo Grande.
Carlino Souza
Pior motorista do mundo
Concluindo: automóvel é um quadrúpede da família dos transportes que vive em grandes e pequenas cidades e se alimenta de água, óleo, gasolina e, eventualmente, de algum pedestre. Costuma andar em bandos e pode ser criado em garagens ou ao ar livre em cima das calçadas ou em vagas não permitidas. Muito vigoroso, sua força equivale à de vários cavalos. Veloz, quando instigado a correr demais pode perder o controle e atacar indiscriminadamente outros automóveis, casas, postes, motocicletas, árvores e homens. Se não for provocado convive tranqüilamente com outras espécies. Ao contrário do que ocorre com o rinoceronte —uma raça em extinção— o automóvel vem se reproduzindo com muita rapidez e há suspeitas de que no futuro ocupará todos os espaços reservados para o homem. Apesar de ser automóvel, não é autodirigido —pelo menos por enquanto— e precisa do ser humano pra ser conduzido. Em Campo Grande, onde vivem os piores motoristas do mundo, sofre indizíveis padecimentos, tais como batidas, capotagens, choques, pancadas, solavancos, quedas etc. Logo entrarão em extinção.

Luca Maribondo
lucamaribondo@uol.com.br
Campo Grande | MS | Brasil


Um comentário:

Normann disse...

Eu tenho convicção que a origem do comportamento incivilizado do motorista desta cidade reside na hipertrofia do seu ego.

As ruas largas são palco de toda atrocidade e desrespeito às regras elementares, mas muito também é da incapacidade na formação.

Que eu saiba, é só aqui em Morenópolis que a faixa central é a mais rápida, que retorno em via de mão dupla de faz pela direita (esteja ou não demarcada) e que é normal considerar o pisca alerta um estacionamento portátil, que lhe confere até o direito de abrir - e manter abertas - as portas do veículo.

Já vi lugares piores, mas realmente o comportamento local deveria ser objeto de ação do poder público na forma de treinamento ou de internação sumária em hospício.