terça-feira, 15 de novembro de 2016

Falta de inteligência

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É uma surpreendente característica humana a de ser capaz de entrar e sair de estados de idiotia várias vezes por dia, sem notar a mudança nem matar acidentalmente espectadores inocentes. Isso me faz pensar numa pergunta transcendental, que certamente irá reacender um debate que parece adormecido, ao menos para o grande público: os serviços de atendimento ao cliente –também chamados de callcenter– das empresas são inteligentes? Podem pensar? Poderão algum dia?

Quanto à primeira pergunta – se os callcenters são inteligentes – a resposta depende, antes de mais nada, do que se define como inteligência, e das distinções entre o artigo genuíno e algo que poderíamos chamar de “ação inteligente”. Por exemplo: aranhas tecem teias, joões-de-barro fazem casas com lama e gravetos e gatos caçam ratos. Cada um desses comportamentos poderia, por si só, ser considerado um “ato inteligente”, uma vez que, aparentemente, todos envolvem algum tipo de planejamento e conhecimento técnico.

Mas sabemos que esses animais não possuem inteligência real. Suas supostas “ações inteligentes” são fruto da evolução natural, consolidada na programação genética da espécie. A caçada dos gatos, por exemplo, segue o mesmo esquema tático há milhares de anos. Se os ratos fossem um pouco mais espertos, eles não cairiam mais nessa.

E os serviços de atendimento ao cliente? Mesmo antes dos sistemas computadorizados, da telefonia eletrônica, dos 0800 e 0300 da vida, a “inteligência” dos callcenters já era popular no mundo empresarial, com as companhias se fazendo de boazinha em seus anúncios, e fazendo de tudo para ferrar o freguês do outro lado dos fios. Com a modernização desses sistemas, o atendimento piorou bastante.

Agora, você, cliente, liga para um callcenter qualquer da vida e de cara ouve uma voz gravada – ou será um robô falante? – dizendo algo assim: “Se você quer ser atendido po um de nossos consultores, disque um. Se você não deseja ser atendido, deslique o telefone. Se você entuba uma marmota, disque dois-quatro. Se você quer fazer telessexo oral e simultâneo disque meia-nove”... E por aí vai.

Toda vez que sou obrigado a ligar para um desses serviços de atendimento ao cliente fico lucubrando se há algum tipo de inteligência entre as pessoas que os planejam, chefiam e executam. Um dos problemas no estudo do fenômeno inteligência é que só conhecemos um exemplo –nós mesmos. Cientificamente, é difícil definir um objeto de estudo quando só se tem um exemplo. É como se todos os gatos do mundo fossem brancos: talvez, ao encontrar um gato preto, os cientistas não percebessem que se tratava da mesma espécie. Da mesma maneira, corremos o risco de esbarrar numa inteligência não humana e sermos incapazes de reconhecê-la. O que não justifica o funcionamento dos callcenters.

Apesar disso, uma tentativa de definir a inteligência de forma global –isto é, com critérios que poderiam valer tanto para seres humanos quanto para marcianos ou funcionários dos serviços de atendimento ao cliente– inclui os seguintes pontos: capacidade de comunicar-se;  criatividade; capacidade de aprender; comportamento orientado ao objetivo; consciência de si mesmo. Cada um desses critérios é necessário, isto é, para ser declarada inteligente, uma criatura qualquer deverá possuir todos eles.

Até  o  momento, tal como os computadores e os robôs, os funcionários dos serviços de atendimento ao cliente das empresas podem comunicar-se, podem ser programados (sim, programados) para ter comportamento orientado ao objetivo, são capazes de simular uma certa criatividade (dizem que existem até frases completas, como verbo e tudo, ditas por essas pessoas que falam ao telefone com voz de robô) e a tecnologia das redes neurais parece estar desenvolvendo atendentes dos callcenters dotados de uma limitada capacidade de aprendizado. Só falta, então, juntar isso tudo numa mesma tecnologia consistente e –algo de que nenhum funcionário de serviço de atendimento ao cliente ainda chegou perto–  dotar o sistema de autoconsciência.

Nesse dia, talvez a mocinha com voz de boneca Barbie ou o rapaz com sotaque de Bambam que atende o gentil leitor nas companhias telefônicas, nas empresas de energia elétrica, no governo, no departamento de assinatura do jornal ou outra instituição qualquer que seja obrigada a ter uma relação com o cidadão comum, repita a frase de Descartes –“Penso, logo existo”– ou, mais  assustador ainda, o versículo com que Javé, o Todo Poderoso, se identificou pra Moisés: “Eu Sou Aquele que É”.

Criados pelos Departamentos de Marketing das empresas, os serviços de atendimento ao cliente existem pra justificar todas besteiras criadas pelos marketeiros das empresas. O Departamento de Marketing usa muitas técnicas avançadas para produtos e vendedores de forma a maximizar os lucros dos seus empregadores. Por exemplo, eles dão réguas ou canetas ou agendas de presente. Os conceitos do marketing estão aí para qualquer um comprovar.

Por exemplo: todo consumidor deseja comprar o melhor produto pelo preço mais baixo. Felizmente, a maioria não sabe distinguir uma garrafa de Cristal, o champanhe, de um recipiente de sidra Cereser. Não importa o quanto o produto seja horrível, sempre existirá alguém que não sabe a diferença ou não tem acesso. A função do marketing é identificar estes segmentos, enfiar um aspirador de pó dentro dos seus bolsos e sugar até que só reste fiapos de tecido. E aos serviços de atendimento ao cliente cabe esconder aspirador sempre que o consumidor o nota.

Por isso, é proibido o uso da inteligência nos callcenters, tal como nos computadores. Elas, as empresas que nos tratam feito idiotas, parecem estar dizendo para nós outros que a vida é complicada demais para a gente ser inteligente o tempo todo. A nós, quando maltratados pelos serviços de atendimento ao cliente, só resta fazer como nos computadores, puxando o fio da tomada quando nos incomodam, e bater o telefone e ficar lamentando tem entrado em mais um conto do vigário. Se você quer ver nossa empresa ir pro brejo, disque 293470854711893...

Luca Maribondo
Campo Grande  | MS | Brasil

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