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É uma surpreendente característica humana
a de ser capaz de entrar e sair de estados de idiotia várias vezes por dia, sem
notar a mudança nem matar acidentalmente espectadores inocentes. Isso me faz
pensar numa pergunta transcendental, que certamente irá reacender um debate que
parece adormecido, ao menos para o grande público: os serviços de atendimento
ao cliente –também chamados de callcenter–
das empresas são inteligentes? Podem pensar? Poderão algum dia?
Quanto à primeira pergunta – se os callcenters são inteligentes – a
resposta depende, antes de mais nada, do que se define como inteligência, e das
distinções entre o artigo genuíno e algo que poderíamos chamar de “ação
inteligente”. Por exemplo: aranhas tecem teias, joões-de-barro fazem casas com
lama e gravetos e gatos caçam ratos. Cada um desses comportamentos poderia, por
si só, ser considerado um “ato inteligente”, uma vez que, aparentemente, todos
envolvem algum tipo de planejamento e conhecimento técnico.
Mas sabemos que esses animais não possuem
inteligência real. Suas supostas “ações inteligentes” são fruto da evolução
natural, consolidada na programação genética da espécie. A caçada dos gatos,
por exemplo, segue o mesmo esquema tático há milhares de anos. Se os ratos
fossem um pouco mais espertos, eles não cairiam mais nessa.
E os serviços de atendimento ao cliente?
Mesmo antes dos sistemas computadorizados, da telefonia eletrônica, dos 0800 e
0300 da vida, a “inteligência” dos callcenters
já era popular no mundo empresarial, com as companhias se fazendo de boazinha
em seus anúncios, e fazendo de tudo para ferrar o freguês do outro lado dos
fios. Com a modernização desses sistemas, o atendimento piorou bastante.
Agora, você, cliente, liga para um callcenter qualquer da vida e de cara
ouve uma voz gravada – ou será um robô falante? – dizendo algo assim: “Se você
quer ser atendido po um de nossos consultores, disque um. Se você não deseja
ser atendido, deslique o telefone. Se você entuba uma marmota, disque
dois-quatro. Se você quer fazer telessexo oral e simultâneo disque
meia-nove”... E por aí vai.
Toda vez que sou obrigado a ligar para um
desses serviços de atendimento ao cliente fico lucubrando se há algum tipo de
inteligência entre as pessoas que os planejam, chefiam e executam. Um dos problemas
no estudo do fenômeno inteligência é que só conhecemos um exemplo –nós mesmos.
Cientificamente, é difícil definir um objeto de estudo quando só se tem um
exemplo. É como se todos os gatos do mundo fossem brancos: talvez, ao encontrar
um gato preto, os cientistas não percebessem que se tratava da mesma espécie.
Da mesma maneira, corremos o risco de esbarrar numa inteligência não humana e
sermos incapazes de reconhecê-la. O que não justifica o funcionamento dos callcenters.
Apesar disso, uma tentativa de definir a
inteligência de forma global –isto é, com critérios que poderiam valer tanto
para seres humanos quanto para marcianos ou funcionários dos serviços de
atendimento ao cliente– inclui os seguintes pontos: capacidade de
comunicar-se; criatividade; capacidade
de aprender; comportamento orientado ao objetivo; consciência de si mesmo. Cada
um desses critérios é necessário, isto é, para ser declarada inteligente, uma
criatura qualquer deverá possuir todos eles.
Até
o momento, tal como os computadores
e os robôs, os funcionários dos serviços de atendimento ao cliente das empresas
podem comunicar-se, podem ser programados (sim, programados) para ter
comportamento orientado ao objetivo, são capazes de simular uma certa
criatividade (dizem que existem até frases completas, como verbo e tudo, ditas por
essas pessoas que falam ao telefone com voz de robô) e a tecnologia das redes
neurais parece estar desenvolvendo atendentes dos callcenters dotados de uma limitada capacidade de aprendizado. Só
falta, então, juntar isso tudo numa mesma tecnologia consistente e –algo de que
nenhum funcionário de serviço de atendimento ao cliente ainda chegou perto– dotar o sistema de autoconsciência.
Nesse dia, talvez a mocinha com voz de
boneca Barbie ou o rapaz com sotaque de Bambam que atende o gentil leitor nas
companhias telefônicas, nas empresas de energia elétrica, no governo, no
departamento de assinatura do jornal ou outra instituição qualquer que seja
obrigada a ter uma relação com o cidadão comum, repita a frase de Descartes
–“Penso, logo existo”– ou, mais
assustador ainda, o versículo com que Javé, o Todo Poderoso, se
identificou pra Moisés: “Eu Sou Aquele que É”.
Criados pelos Departamentos de Marketing
das empresas, os serviços de atendimento ao cliente existem pra justificar
todas besteiras criadas pelos marketeiros das empresas. O Departamento de
Marketing usa muitas técnicas avançadas para produtos e vendedores de forma a
maximizar os lucros dos seus empregadores. Por exemplo, eles dão réguas ou
canetas ou agendas de presente. Os conceitos do marketing estão aí para
qualquer um comprovar.
Por exemplo: todo consumidor deseja
comprar o melhor produto pelo preço mais baixo. Felizmente, a maioria não sabe
distinguir uma garrafa de Cristal, o champanhe, de um recipiente de sidra
Cereser. Não importa o quanto o produto seja horrível, sempre existirá alguém
que não sabe a diferença ou não tem acesso. A função do marketing é identificar
estes segmentos, enfiar um aspirador de pó dentro dos seus bolsos e sugar até
que só reste fiapos de tecido. E aos serviços de atendimento ao cliente cabe
esconder aspirador sempre que o consumidor o nota.
Por isso, é proibido o uso da inteligência
nos callcenters, tal como nos
computadores. Elas, as empresas que nos tratam feito idiotas, parecem estar
dizendo para nós outros que a vida é complicada demais para a gente ser
inteligente o tempo todo. A nós, quando maltratados pelos serviços de
atendimento ao cliente, só resta fazer como nos computadores, puxando o fio da
tomada quando nos incomodam, e bater o telefone e ficar lamentando tem entrado
em mais um conto do vigário. Se você quer ver nossa empresa ir pro brejo,
disque 293470854711893...
Luca Maribondo
Campo Grande | MS | Brasil
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