quarta-feira, 2 de novembro de 2016

E a culpa das autoridades?

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As chamadas autoridades estão sempre afirmando que o problema da circulação nas cidades e estradas é culpa da falta de educação dos atores do trânsito, motoristas principalmente. E pra coibir os problemas apelam pra punição pecuniária, sempre aumentando o valor das multas principalmente, como aconteceu faz uns pouco dias.

Dizem as tais autoridades que a maioria dos acidentes são causados por pessoas que saem bêbadas e em alta velocidade e fazendo manobras arriscadas. Um ex-prefeito chegou a dizer que “depois que acontece a confusão, fazem protestos culpando a minha mãe. O buraco é mais embaixo. Tem que ter uma conscientização mais ampla (...)”.

Vulgaridades à parte, as autoridades (todas) preferem ignorar a parte que cabe à suas administrações na esculhambação no trânsito da cidade —aliás, de todas as cidades do país. O poder público tem uma gorda cota de participação nas falhas no sistema de circulação de Campo Grande, falhas essas que vão do planejamento à manutenção das vias públicas, passando por sinalização, construção, fiscalização etc. etc. e tal.

Há uma grande insatisfação da população desta Morenópolis com a insegurança no trânsito da cidade e as autoridades do setor, demonstrando ineficiência e ineficácia no exercício das próprias funções, jogam toda a culpa no cidadão e fogem das suas responsabilidades como gestores da coisa pública do país, do Estado e da cidade. A população brasileira está assustada com a violência que assola o país. A sensação de impotência está explícita na face dos governantes. O poder público, cada vez mais inerte, se pronuncia de maneira confusa e pouco eficaz. A sociedade clama por segurança.

E um dos temas recorrentes nas discussões sobre a violência é o trânsito. A violência atinge patamares assustadores. Os acidentes graves já estão incorporados à rotina dos brasileiros, seja nos grandes centros urbanos ou nas pequenas localidades do país —e Campo Grande não está entre as exceções. Colisões, abalroamentos, atropelamentos, viraram fatos corriqueiros no dia-a-dia da população. Não há qualquer justificativa para acidentes que tiram de forma tão absurda a vida das pessoas, principalmente sabendo-se que todos eles podem ser evitados na medida em que o condutor dirija com responsabilidade e respeito a outras pessoas. Os números chocam, impressionam e doem.

As causas dos “acidentes” normalmente têm sempre um vilão para as autoridades— seja ela de trânsito ou policial: o condutor (dos veículos). É sempre ele que dirige alcoolizado, que tenta uma ultrapassagem em local não permitido ou dorme ao volante. As mortes poderiam ser evitadas se os condutores dirigissem com responsabilidade e respeito a outras pessoas. Mas as explicações não podem parar por aí. Não mesmo. As pessoas morrem nas ruas, avenidas, rodovias e estradas deste país por uma série de fatores. E o mais grave deles é a omissão estatal —com certeza à autoridade cabe mais culpa que ao motorista e motoqueiro. Se o motorista bebe e dirige, é também porque falta fiscalização para punir com rigor. A impunidade impera também no trânsito.

Quando se divulga que uma ultrapassagem proibida provocou uma tragédia, nenhum especialista vai checar se a sinalização no local era boa ou se havia um buraco na pista. Quando um caminhoneiro dorme ao volante, ninguém quer saber quantas horas ininterruptas ele trabalhava nem as condições de saúde. Nessas horas, uma das desculpas mais comuns das autoridades é que os órgãos de fiscalização não dão conta de tantas atribuições. Só que isso precisa mudar. Chegou a hora de virar o jogo. Por que não se toma uma iniciativa realmente séria e abrangente para conter essa grande epidemia que é a das mortes no trânsito?

As medidas devem ir além das campanhas de conscientização. É preciso muito mais do que difundir o “se beber, não dirija”. É necessário reunir as autoridades pra preparar uma estratégia única para conter as tragédias nas vias. Fazer um levantamento completo dos problemas enfrentados, melhorar as vias públicas e adotar uma fiscalização única e eficaz.

Pode não render votos, mas evita tragédias diárias. Chegou o momento de estabelecer uma política séria de combate à violência no trânsito. Ou melhor: de firmar um pacto pela vida. E isso tem de começar com as autoridades parando de dizer platitudes, que colocma toda filosofia do trânsito na culpa dos motoristas. Fariam melhor se pusessem a planejar e gerir melhor o trânsito, cuidar melhor do sistema viário das cidades.

A autoridade tem uma grande parcela de culpa pelo que acontece de errado no trânsito. Se cada motorista exercitasse os valores da cidadania, da paciência, da solidariedade, da gentileza e da responsabilidade, o trânsito seria muito mais civilizado. Acontece que a mídia, quase sempre, só cobra do cidadão; nunca cobra do poder público, embora haja tantos erros no trânsito da exclusiva responsabilidade da autoridade.

Sempre achei que um dos grandes erros da Natureza —ou do Todo–Poderoso, sabe-se lá!— é não ter feito a incompetência doer. Já imaginou o gentil leitor se a incompetência doesse, por exemplo, nas autoridades do trânsito? Elas têm uma enorme aptidão para vigiar, fiscalizar, multar, aterrorizar o cidadão, cobrar impostos escorchantes, mas nenhuma para fazer o que lhes compete de fato. Um exemplo: por que existem computadores, câmeras-robôs, radares, sonares, câmeras nos ônibus (o serviço de transporte é uma porcaria, mas o usuário está sempre estrelando os filminhos dos ônibus), lombadas eletrônicas, fotossensores e outros badulaques eletroeletrônicos para achacar o motorista, se as autoridades não são capazes de fazer a parte que lhes cabe na administração do trânsito?

Mas o trânsito continua mal administrado como sempre —e somos nós, cidadãos, que levamos a culpa por tudo o que acontece de errado. Você, gentil leitor, já observou com que cuidado, com que refinamento, com que acabamento sofisticado —e a que custo, claro!— com que a autoridade (do trânsito e de outras áreas) exerce a sua inépcia, inaptidão e incompetência? Mas a culpa é sempre minha, sua, nossa —e com o apoio dos media.

Entretanto, os grandes problemas —exatamente aqueles da competência do Poder Público— do trânsito continuam sem solução. As vias públicas continuam mal projetadas, com manutenção precária, mal sinalizadas e mal fiscalizadas; as autoescolas continuam ensinando mal a quem passa por suas salas de aula e veículos de treinamento; as autoridades continuam não cumprindo as leis, mas exigindo que o cidadão as cumpra rigorosamente, e multando pesadamente quando isso não acontece. Mas nós, cidadãos, não temos como multar as autoridades.

Quase toda a mídia veicula alentadas reportagem sobre as vias de trânsito mais intenso de Campo Grande. São ruas e avenidas perigosas pra danar, extremamente estressantes para quem nelas circula. E os responsáveis pela reportagem não perdoam: a culpa pela esculhambação é nossa, motoristas, motoqueiros, passageiros, pedestres. Temos, sim!, nossa parcela de culpa. Mas e as autoridades que não mexem no planejamento, nas dimensões, na construção, na manutenção e na sinalização das vias públicas? E nunca são multadas por isso.

Aliás, seria ótimo se isso fosse possível, é ou não é? Se toda vez que um servidor público pisasse no tomate, a gente pudesse tascar-lhe uma pesadíssima multa, seria uma delícia —pois, mais cedo ou mais tarde, todo governante, todo político, acaba correspondendo àqueles que não confiam nele. Se a gente pudesse realmente punir as autoridades que dão mancada, o poder público seria muito mais confiável e eficaz. E nós, cidadãos, seríamos mais felizes.


Luca Maribondo
lucamaribondo@uol.com.br
Campo Grande |MS | Brasil


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