segunda-feira, 30 de maio de 2016

Galera é a sua turma

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Nunca me refiro a um grupo de pessoas como galera. Explico porque: quem gosta e estuda as palavras conhece bem o uso político que se faz delas. Desde sempre, esta é uma prática utilizada por governantes, políticos e seus sectários, líderes religiosos, jornalistas e outros detentores do poder. O uso político das palavras joga sabiamente com sua polissemia, de modo que elas têm como verdade o fato de terem diversas verdades.

Por isso, com frequência, grupos diferentes podem vincular seus interesses a este ou aquele sentido possível das palavras. E as lutas a propósito das palavras vão consistir na tentativa de alterar a hierarquia comum dos sentidos para constituir como sentido fundamental um sentido até então secundário, ou melhor, subentendido, operando assim uma revolução simbólica que pode estar na origem de revoluções políticas.
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Galera é a sua turma

É preciso compreender que o discurso, o uso político das palavras, concorre para transformar a consciência humana e livrá-la das mitificações e mistificações, abrindo um campo enorme para a ação dos homens, mediante o uso da razão; mas uma razão despida de sua conotação instrumental e utilitária, uma razão que busca o reencantamento do mundo, um sentido maior do qual somos órfãos, e do qual dependemos visceralmente; uma razão que busca resgatar os valores universais de justiça e paz, e que busca uma nova ética, fundada em bases humanistas e desatrelada do relativismo contemporâneo, desintegrador dos laços sociais.

Nem sempre é assim, claro, muito pelo contrário. Mas deveria ser assim.

Um exemplo clássico de uso político da palavra é o termo pagão. Em Roma, no início do Cristianismo, pagánus era o homem da aldeia, aldeão; cidadão que não era soldado. Mas para desqualificar aqueles que não aderiam à nova religião, os cristãos passaram a adjetivar o pagano como aquele que não foi batizado e era adepto de qualquer religião que não adota o batismo ou adota o politeísmo. Ou seja, pagão era o herege.

O mesmo aconteceria mais tarde com as palavras direita e esquerda, no sentido de ideologia política. A designação de direita e esquerda dada a um e outro antagonista político-social foi mera casualidade topológica. Esquerda é um termo político muito inadequado, embora consagrado em várias línguas, tanto quanto direita. Marx e Engels não usaram a distinção, pois se referiam direta e cientificamente às classes sociais em luta ou a movimento, com qualificação ou sem ela. Lênin só utilizou as palavras esquerda e esquerdismo de maneira irônica.

Assim, os vocábulos esquerda, centro e direita dissimulam e confundem, porque não refletem claramente a base real de classes e subclasses sociais em que se articula a disputa política, assim como dão margem a entendimentos equivocados devido à sua polissemia. Coisa direita, comportamento direito, é certo, correto, justo, elogiável etc. Conduta esquerda é conduta estranha, canhestra, duvidosa etc. E é bom ter a referência do que se refere a esses posições: direita é destra, esquerda é sinistra —mas a ignorância paz com que a maioria não saiba disso. E sinistra significa perniciosa, trágica, calamitosa.

Ademais, os crentes acham piamente que o diabo existe e é canhoto e tem a cor das esquerdas, o vermelho... Isto tem fundamento numa antiquíssima superstição arraigada nas línguas indo-europeias. A distinção entre esquerda e direita dá margem às tentativas frustrantes e enganosas de taxonomia política de quem ou do que pode ser considerado de direita ou de esquerda. Substitui a análise do caso concreto.

Isso nos leva a outro exemplo: sinistro, que antes nada significava além de canhoto, isto é, quem usa preferencialmente a mão esquerda, mas passou a ser quem pressagia acontecimentos infaustos; agourento, funesto, que é pernicioso; mau. Sinistro era simplesmente o contrário de destro... Mas a crença popular dizia que ser canhoto era ter parte com o Diabo.

Muitas outras palavras ganharam novas conotações além da original por mero uso político, além das já mencionadas: analfabeto, burro, discriminação, preconceito, paranoia, ambiente, sustentável, feminismo, corrupção e tantas outras.

Um dos mais recentes exemplos do uso político da palavra é o vocábulo homofobia e seus derivados. O termo é um neologismo criado pelo psicólogo norte-americano George Weinberg, em 1971, na verdade um acrônimo resultante da união da palavra grega phobos (fobia), com o prefixo homo (igual, semelhante), como remissão à palavra homossexual.

Phobos é medo em geral. Fobia é o medo irracional (instintivo) de algo. Porém, fobia neste termo é empregado não só como medo geral (irracional ou não), mas também como aversão ou repulsa em geral, qualquer que seja o motivo. Como qualquer outra fobia, é patológica. É doença. Etimologicamente, o termo mais aceitável para a ideia expressa seria homofilofóbico, que é medo de quem gosta do igual. Mas quem iria usar essa palavra tão escalafobética?

Assim, ficou homofobia mesmo, que é largamente usada pelos gays do mundo inteiro para marcar quem não aprecia o homossexualismo e os homossexuais, com ou sem razão, como se isso fosse crime —como criminalizar uma doença? O jogo político se tornou tão cruento, que hoje é difícil alguém falar abertamente contra o homossexualismo. Se o fizer, logo será taxado de homofóbico e execrado em praça pública.

Boa parte da culpa por esse uso é dos jornalistas, o que é um pecado mortal, pois como diz Alberto Dines, “jornalistas não podem oferecer os seus leitores conceitos enganosos. Jornalistas não deveriam sequestrar o sentido das palavras”. Vão acabar provocando logofobia nas pessoas —e aí estarão mortos como profissão.

Ah!... E não se refira a mim como galera, que originalmente eram os caras prisioneiros que remavam nos porões da antigas galeras, um tipo de embarcação, galé. Galera é a sua turma.

Luca Maribondo

Campo Gande | MS | Brasil

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