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Nunca me refiro a
um grupo de pessoas como galera. Explico
porque: quem gosta e estuda as palavras conhece bem o uso político que se faz
delas. Desde sempre, esta é uma prática utilizada por governantes, políticos e
seus sectários, líderes religiosos, jornalistas e outros detentores do poder. O
uso político das palavras joga sabiamente com sua polissemia, de modo que elas
têm como verdade o fato de terem diversas verdades.
Por isso, com
frequência, grupos diferentes podem vincular seus interesses a este ou aquele
sentido possível das palavras. E as lutas a propósito das palavras vão
consistir na tentativa de alterar a hierarquia comum dos sentidos para
constituir como sentido fundamental um sentido até então secundário, ou melhor,
subentendido, operando assim uma revolução simbólica que pode estar na origem
de revoluções políticas.
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Galera é a sua turma |
É preciso
compreender que o discurso, o uso político das palavras, concorre para
transformar a consciência humana e livrá-la das mitificações e mistificações,
abrindo um campo enorme para a ação dos homens, mediante o uso da razão; mas
uma razão despida de sua conotação instrumental e utilitária, uma razão que
busca o reencantamento do mundo, um sentido maior do qual somos órfãos, e do
qual dependemos visceralmente; uma razão que busca resgatar os valores
universais de justiça e paz, e que busca uma nova ética, fundada em bases
humanistas e desatrelada do relativismo contemporâneo, desintegrador dos laços
sociais.
Nem sempre é assim,
claro, muito pelo contrário. Mas deveria ser assim.
Um exemplo clássico
de uso político da palavra é o termo pagão. Em Roma, no início do Cristianismo,
pagánus era o homem da aldeia,
aldeão; cidadão que não era soldado. Mas para desqualificar aqueles que não
aderiam à nova religião, os cristãos passaram a adjetivar o pagano como aquele
que não foi batizado e era adepto de qualquer religião que não adota o batismo
ou adota o politeísmo. Ou seja, pagão era o herege.
O mesmo aconteceria
mais tarde com as palavras direita e esquerda, no sentido de ideologia política.
A designação de direita e esquerda dada a um e outro antagonista
político-social foi mera casualidade topológica. Esquerda é um termo político
muito inadequado, embora consagrado em várias línguas, tanto quanto direita.
Marx e Engels não usaram a distinção, pois se referiam direta e cientificamente
às classes sociais em luta ou a movimento, com qualificação ou sem ela. Lênin
só utilizou as palavras esquerda e esquerdismo de maneira irônica.
Assim, os vocábulos
esquerda, centro e direita dissimulam e confundem, porque não refletem
claramente a base real de classes e subclasses sociais em que se articula a
disputa política, assim como dão margem a entendimentos equivocados devido à
sua polissemia. Coisa direita, comportamento direito, é certo, correto, justo,
elogiável etc. Conduta esquerda é conduta estranha, canhestra, duvidosa etc. E
é bom ter a referência do que se refere a esses posições: direita é destra,
esquerda é sinistra —mas a ignorância paz com que a maioria não saiba disso. E
sinistra significa perniciosa, trágica, calamitosa.
Ademais, os crentes
acham piamente que o diabo existe e é canhoto e tem a cor das esquerdas, o
vermelho... Isto tem fundamento numa antiquíssima superstição arraigada nas
línguas indo-europeias. A distinção entre esquerda e direita dá margem às
tentativas frustrantes e enganosas de taxonomia política de quem ou do que pode
ser considerado de direita ou de esquerda. Substitui a análise do caso
concreto.
Isso nos leva a
outro exemplo: sinistro, que antes nada significava além de canhoto, isto é,
quem usa preferencialmente a mão esquerda, mas passou a ser quem pressagia
acontecimentos infaustos; agourento, funesto, que é pernicioso; mau. Sinistro
era simplesmente o contrário de destro... Mas a crença popular dizia que ser
canhoto era ter parte com o Diabo.
Muitas outras
palavras ganharam novas conotações além da original por mero uso político, além
das já mencionadas: analfabeto, burro, discriminação, preconceito, paranoia,
ambiente, sustentável, feminismo, corrupção e tantas outras.
Um dos mais
recentes exemplos do uso político da palavra é o vocábulo homofobia e seus
derivados. O termo é um neologismo criado pelo psicólogo norte-americano George
Weinberg, em 1971, na verdade um acrônimo resultante da união da palavra grega
phobos (fobia), com o prefixo homo (igual, semelhante), como remissão à palavra
homossexual.
Phobos é medo em
geral. Fobia é o medo irracional (instintivo) de algo. Porém, fobia neste termo
é empregado não só como medo geral (irracional ou não), mas também como aversão
ou repulsa em geral, qualquer que seja o motivo. Como qualquer outra fobia, é patológica.
É doença. Etimologicamente, o termo mais aceitável para a ideia expressa seria
homofilofóbico, que é medo de quem gosta do igual. Mas quem iria usar essa
palavra tão escalafobética?
Assim, ficou
homofobia mesmo, que é largamente usada pelos gays do mundo inteiro para marcar
quem não aprecia o homossexualismo e os homossexuais, com ou sem razão, como se
isso fosse crime —como criminalizar uma doença? O jogo político se tornou tão
cruento, que hoje é difícil alguém falar abertamente contra o homossexualismo.
Se o fizer, logo será taxado de homofóbico e execrado em praça pública.
Boa parte da culpa
por esse uso é dos jornalistas, o que é um pecado mortal, pois como diz Alberto
Dines, “jornalistas não podem oferecer os seus leitores conceitos enganosos.
Jornalistas não deveriam sequestrar o sentido das palavras”. Vão acabar
provocando logofobia nas pessoas —e aí estarão mortos como profissão.
Ah!... E não se
refira a mim como galera, que originalmente eram os caras prisioneiros que
remavam nos porões da antigas galeras, um tipo de embarcação, galé. Galera é a
sua turma.
Luca Maribondo
Campo Gande | MS | Brasil
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