segunda-feira, 18 de maio de 2015

Uma história fantástica

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Tem gente com a crença profunda na ideia de que a televisão de fato existe. Entretanto, apesar dos fenômenos bizarros a ela relacionados, alguns cientistas do mundo inteiro, mais cautelosos e partidários desta ficção espantosa que se chama “o fato”, duvidam da existência da televisão como tal, atribuindo seus efeitos a um vírus filtrável, isto é, um agente de doença invisível, que passa através dos filtros e só pode ser cultivado em presença de células vivas que sejam suscetíveis, também conhecido como ultravírus ou tevírus. 


Em resumo, esses homens de ciência defendem a teoria de que a tv não passa de uma moléstia pandêmica dos grandes centros urbanos e neurológicos, transmitida através de bizarras caixas de plástico ou madeira, chamadas receptores, que têm antenas, quatro ou mais patas, cíatos, um grande olho brilhante —que se torna ativo, como nos mosquitos, à hora do crepúsculo—, cinescópio, iconoscópio, e são acéfalos ou anencéfalos, além de super-heteródinos —os mais modernos utilizam sistemas como plasma, cristal líquido, led e outros.

Surgida originalmente no hemisfério setentrional, suas primeiras vítimas foram detectadas nos EUA, Alemanha e Inglaterra, depois na Itália, França, Belarus, Macedônia, Bósnia Herzegovina, Croácia e outros países da Comunidade Econômica Européia. Segundo os especialistas no assunto, também conhecidos como teleologistas, a tv ataca principalmente o cérebro, o cerebelo e telencéfalo, apresentando a curiosa capacidade de devastar tanto pessoas vivas quanto gente já defunta. Isto, aliás, seria explicado pelo fato de que criações dos grandes gênios da humanidade, quando acometidas pela tv, transformarem-se em fantasias pueris, cretinas e ocas.

Hoje, a televisão fala os idiomas de todo o mundo. Aqui, no Brasil, segundo o jornal Folha de S.Paulo, “do galego ao árabe, do japonês ao hebraico, a tv brasileira é uma verdadeira ‘torre de Babel’. Nela, o telespectador pode encontrar onze línguas. distribuídas em canais internacionais e/ou programas feitos no Brasil por descendentes de imigrantes”. Dizem os especialistas que não demora muito a tv brasileira vai conseguir falar em português.

Ao descrever os sintomas, os cientistas observam que as pessoas afetadas pela tv passam horas diante do olho brilhante, julgando observar ali uma infinidade de imagens fascinantes. Alguns animais domésticos, além de seres humanos, também são suscetíveis à moléstia, como é o caso de inúmeros gatos, cães, papagaios, antas e peixinhos de aquário que acabam tão fascinados quanto homens e mulheres, crianças e idosos, bichas e lésbicas.

Mas o animal doméstico que mais gosta de tv é a mosca. É notável a freqüência e a obstinação com que este díptero costuma aparecer, seja participando das imagens que as pessoas acometidas de tv (telepacientes ou telespectadores) imaginam ver no vídeo —nas orelhas dos atores das novelas, no nariz dos apresentadores de telejornais, na testa de políticos entrevistados etc.—, seja ela mesma participando como telespectadora amiga, pousando (e posando) e decolando da tela. O fato de a mosca ser vidrada em tv pode ser explicado pela especial preferência que o asqueroso inseto demonstra por matéria fecal ou coisas em estado putrefato ou malcheirosas.

Certos povos da Lapônia, algumas tribos da Amazônia interior, ugro-fineses da Europa setentrional e outras gentes menos votadas são imunes à tv e suas conseqüências. Em compensação, particularmente vulneráveis são donas de casa, senhoras de certa idade, crianças, políticos e deficientes mentais. Nos casos mais agudos, o telespectador —pessoa acometida pela moléstia— perde o interesse por tudo que não seja tv, fica preguiçosa, abandona a família, deixa de comer e passa os dias estático diante da telinha, olhos vidrados nos conjuntos de imagens a que chamam de programas, shows, telejornais, reality shows, aos quais dá nomes extravagantes como
Mulheres, Chiquititas, Roda a Roda, A Praca É Nossa, Hora do Faro, Operação de Risco, Te Peguei na Tv, Teste de Fidelidade, The Voice Brasil, Panico na Band, Master Chef etc. e tal.

Estes —e outros— são programas de televisão que, quando a gente liga, não consegue mais desligar —dorme imediatamente. As vezes fico pensando se não estou redondamente (ou quadradamente) enganado: os que vivem combatendo a televisão deveriam ser mais humildes ao emitir juízo de valor a respeito dela; afinal, 150 milhões de cretinos (só no Brasil) não podem estar tão errados.

Na fase terminal nota-se a liquefação parcial ou total da massa encefálica, dislogia, esquizoidia, encefalocele galopante e uma profunda frenoplegia. Esses fenômenos são perceptíveis tanto naqueles telepacientes que assistem tv, quanto naqueles outros que pensam que estão produzindo as imagens. Talvez seja por isso tudo que o humorista Millôr Fernandes tenha afirmado que “uma coisa não se pode negar à tv: ela não tem medo de insultar a inteligência do telespectador”.

Neste domingo passado tivemos um exemplo muito eloquente dos malefícios da tv. No programa chamado de Fantástico (palavra que, entre outras coisas, significa aquilo que só existe na imaginação, na fantasia; que não tem nenhuma veracidade, falso, inventado etc.), da Rede Globo de Tv, no domingo passado, 17 de maio. O show começa com a pergunta “você daria um cheque em branco para alguém?  (...) O Fantástico vai contar a história de pessoas que fizeram exatamente isso: acreditaram nas promessas de um político e receberam em troca apenas dívidas e ameaças.

Mais longe vai o Fantástico: “o principal suspeito de aplicar esse golpe, segundo o Ministério Público, é o atual prefeito de Campo Grande (Gilmar Olarte), capital do Mato Grosso do Sul e o valor pode chegar a R$ 1 milhão. De acordo com as investigações, tudo começou durante a campanha eleitoral municipal de 2012.”
Quem emprestou os cheques, ficou com a conta bancária zerada e passou a sofrer ameaças dos agiotas. Segundo o Ministério Público, em troca desse dinheiro, o prefeito teria oferecido cargos e algumas vantagens as pessoas prejudicadas. “Não existe nenhum tipo de ação nesse sentido”, garante Olarte.

Enfim, gente ingênua ou tão mal-intencionada quanto o prefeito acabou se ferrando na história. O pastor continua estando prefeito, a sociedade continua sendo enganada pelos políticos corruptos e a ganância continua sendo causa de malefícios (quem dá um cheque assinado em branco a um político?). E a tv, prejudicando a todos e ganhando muito dinheiro com isso. Depois que analiso tudo isso, penso na morte e fico apavorado: será que existe televisão depois da morte?

Luca Maribondo
Kerobokan, Bali, 18 de maio/2015
lucamaribondo@gmail.com

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