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Em sua mais recente edição, a revista paulista “Veja”
tras um caderno publicitário especial em homenagem a Campo Grande, que
completou nesta semana mais um aniversário de sua ascenção à condição de
Município. Em determinado ponto da publicacão está registrada a informação de
que a cidade é a capital do Estado de Mato Grosso. Muita gente se levanta pra deblaterar. E
vitupera a ignorância de quem dá essa informação. São as mesmas pessoas que
ingnoram a História da cidade, e comemorar seu aniversário em data errada.
Quem conta, em "Crônicas de uma Vila
Centenária", é Abílio Leite de Barros, criador de bois, advogado e autor
de belas histórias em forma de crônicas e contos: "Vinte seis de agosto de
mil oitocentos e noventa e nove seria um dia de festa na vila de Santo Antônio
de Campo Grande. Na igreja do protetor os sinos dariam o sinal festivo.
Aglomerações, foguetórios, churrascos, folguedos entrariam pela noite ao som de
catiras e polcas paraguaias. Afinal, depois de antigas e insistentes
reivindicações, o governo estadual assinava a resolução de emancipação da vila,
criando o município de Campo Grande. Essa festa, entretanto, não houve. Por uma
razão simples: ninguém sabia".
Mais adiante, Barros explica porque ninguém da pequena
vila ficou sabendo do evento burocrático logo depois de acontecido: "A
população de Campo Grande só ficaria sabendo da emancipação política algum
tempo depois da sua assinatura. O rádio, os americanos só inventariam em 1920.
O telefone estava longe. O telégrafo era um projeto que Rondon no começo do
século (20) faria a aventura de implantar. O correio já existia no papel,
criado para a vila pela administração geral de Cuiabá (capital de Mato Grosso),
cinco anos antes da emancipação. Mas ninguém ficou sabendo, obviamente, pela
falta de correio (...)".
É o mesmo Abílio Leite de Barros quem afirma que naquela
data, 27 anos depois da chegada de José Antonio Pereira, o fundador da cidade,
"população da vila (...) andaria em torno de trezentas a quatrocentas
pessoas". Como se pode verificar, já havia um bocado de gente morando
naquele pequeno povoado antes que fosse elevada à condição de Município. O
decreto foi publicado na Gazeta Official no dia 31 de agosto de 1899.
Aquele que é considerado o fundador da cidade, o mineiro
José Antonio Pereira, então com 47 anos, chegou região no dia 21 de junho de
1872. Junto com ele seu filho Antonio Luiz Pereira e um guia cuiabano, Luiz
Pinto Guimarães, além de dois escravos cujos nomes a história não registrou.
Pereira parou por um tempo, depois seguiu viagem e voltou em 1875, já com a
determinação de fundar um povoado: com ele viriam mais de sessenta pessoas
entre adultos e crianças. O povoado ganhou o nome de Arraial dos Pereiras. A
partir daí foi crescendo, crescendo...
No Brasil, durante muito tempo, a data que era
considerada a da fundação de municípios antes da proclamação da República era o
dia em que era transformado em vila. Com o status de vila o arraial ou
freguesia adquiria a sua autonomia político-administrativa, passando a
constituir Câmara de Vereadores, com direito de cobrar impostos e baixar
posturas; recebia ainda um juiz de fora, pelourinho e cadeia pública. O título
de cidade, neste tempo, era mais honorífico e pouco acrescentava em termos de
organização política e administrativa. A presença da Câmara é que indicava a
existência da célula político-administrativa. Hoje, no entanto, a vila não mais
tem valor administrativo no Brasil, sendo usada apenas no sentido informal. Por
isto, hoje, equivocadamente, muitos municípios criados no império e na colônia
comemoram o dia da sua fundação como sendo o dia em que foram elevados à
condição de cidade, o que não tem nenhum valor político-administrativo, na
verdade alcançaram autonomia política no dia da criação da vila.
Parece não haver uma regra estabelecida para determinar
exatamente quando uma cidade é considerada fundada. Pra ficar apenas em três
grandes capitais brasileiras, Salvador, Rio e São Paulo: em 29 de março de 1549
chega Tomé de Sousa e comitiva, em seis embarcações, com ordens do rei de
Portugal, de fundar uma cidade-fortaleza chamada do São Salvador. Nasceu assim
Salvador, já cidade, já capital, sem nunca ter sido província. Mas quando Tomé
de Souza desembarcou, já havia europeus por lá: colonos franceses, liderados
por Nicolas de Villegagnon, estabeleceram-se no interior da baía em 1555,
pretendendo fundar uma colônia —a França Antártica— e uma cidade —Henriville—,
sendo expulsos pelos portugueses entre 1560 e 1567.
Já a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi
fundada por Estácio de Sá que, em 1° de março de 1565, desembarcou num istmo
entre o Morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, erguendo uma paliçada defensiva. A
vitória de Estácio de Sá subjugando elementos remanescentes franceses, os
quais, aliados aos índios tamoios, dedicavam-se ao comércio, ameaçando o
domínio português na costa do Brasil, garantiu a posse do Rio de Janeiro,
rechaçando a partir daí novas tentativas de invasões estrangeiras e expandindo,
à custa de guerras, o seu domínio sobre as ilhas e o continente. A povoação foi
refundada no alto do morro do Castelo (completamente arrasado em 1922), no
atual centro histórico da cidade. O novo povoado marca de fato, o começo da
expansão urbana da capital fluminense.
E a vila de São Paulo de Piratininga teve início em 25 de
janeiro de 1554 com a construção de um colégio jesuíta pelos padres Manuel da
Nóbrega e José de Anchieta, entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. Essa data é
considerada a fundação oficial da cidade. O colégio, que funcionava num
barracão feito de taipa de pilão, tinha por finalidade a catequese dos índios
que viviam na região. O povoamento da região teve início em 1560, quando, por
ordem de Mem de Sá, governador geral da colônia, mandou a população da vila de
Santo André da Borda do Campo para os arredores do colégio, denominado
"Colégio de São Paulo de Piratininga" —o nome foi escolhido porque
dia 25 de janeiro a Igreja Católica celebra a conversão do apóstolo Paulo de
Tarso. Desta forma, a vila de Santo André da Borda do Campo foi extinta, e São
Paulo foi elevada à categoria de vila.
Assim, fica a pergunta: quantos anos, afinal, tem a
capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande? Desde 1999, quando o prefeito de
então, o médico André Puccinelli —hoje governador do Estado—, resolveu
comemorar com pompa e circunstância o centenário da assinatura do decreto que
elevava a então paróquia de Campo Grande à condição de vila, os anos de
existência da cidade passaram a ser contados a partir de 26 de agosto de 1899,
mesmo porque isso interessava aos interesses marqueteiros do prefeito. Mas em
1972, o prefeito da época, Antonio Mendes Canale, já havia comemorado o
centenário da cidade. Logo, cabe uma pergunta: Campo Grande tem 115 anos
(contados a partir de 1899), tem 139 (contados a partir de 1875) ou 142 (a
partir de 1872)?
Não sou um historiador, mas penso que, por uma questão de
reconhecimento àqueles que se aventuraram por terras tão longínquas e foram os
pioneiros de uma cidade que cresceu muito mais do que seria de se esperar, o
número de anos de existência da cidade deve ser contado a partir de 1872. A
História é contada a partir de verdades, de mentiras, de lendas, da visão
pessoal de quem a conta e muitos outros fatores, muitos deles imponderáveis, mas
já que temos uma data marcada, que fiquem com ela. Para o bem da História da
cidade e de todos nós.
Mas afinal, para que estudar a História? Por que devemos
nos preocupar com qualquer coisa que ultrapasse o nosso tempo e espaço? Na
época atual há uma razão prática para que adotemos uma visão mais larga.
Durante os últimos quinhentos ou seiscentos anos, toda a superfície terrestre e
a camada aérea que a envolve têm sido interligadas fisicamente pelo espantoso
avanço da ciência e da tecnologia. Politicamente, entretanto, a humanidade
ainda não se integrou e continuamos estranhos uns aos outros em nossas formas
de vida locais, herdadas de tempos anteriores à "derrubada das
distâncias".
Minha ponderação pode soar como um despautério, mas em
defesa do meu argumento cito um exemplo bem simples e próximo de todos nós:
estamos (nós, os descendentes de europeus e negros) aqui nestas terras
tupiniquins há mais de quinhentos anos e até hoje não compreendemos de forma
racional aqueles que estavam aqui antes da gente. Nós, os alienígenas, até hoje
não compreendemos os indígenas, apesar de todos estes anos de convivência
belicosa. Tão belicosa que os indígenas (aqui no sentido de antônimo de
alienígenas) foram praticamente dizimados numa carnificina que perdura, ainda que
reduzida, até os dias de hoje. Mas carnificina é carnificina.
É uma situação extremamente perigosa. Duas guerras de
âmbito planetário e o atual estado de ansiedade, frustração, tensão, estresse e
violência —generalizado, inclusive no Brasil, que vive em estado de guerra
civil em algumas regiões—, assim o indica. A humanidade seguramente se
destruirá, a não ser que consiga desenvolver-se como uma só família.
Mas para isso, precisamos, entre outras coisas, conhecer
—familiarizar-nos mutuamente— as nossas histórias, pois o homem não vive apenas
no presente imediato. Transitamos num fluxo de tempo mental, lembrando o
passado, refletimos (ou ao menos tentamos refletir) no presente e aguardando
—com esperança e muito medo— o futuro que se aproxima. No dizer do historiador
britânico Eric Hobsbawn, "o passado legitima. O passado fornece um pano de
fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que comemorar".
Esta razão prática, nos dias atuais, para estudar a
História —de fatos próximos ou distantes de nós— de forma abrangente me parece
óbvia e irrefutável. Ainda, porém, que não sejamos obrigados a estudá-la por
preocupações de autopreservação e de esperança, da busca de vencer o medo,
deveríamos ao menos ser motivados pela curiosidade —a curiosidade é uma das
faculdades, talvez a principal, que distinguem a natureza humana.
E que Campo Grande comemore os seus reais 142 anos, senão
por causa da preservação histórica, ao menos em respeito àqueles que primeiro
aportaram nestes campos de vacaria. Penso que a verdade é o que sobra depois
que as pessoas esgotaram seus arsenais de mentiras: já se falou tanta bobagem
sobre a história da cidade que agora é melhor finalmente
estabelecer/restabelecer a verdade histórica. Assim, todos terão direito de
reclamar contra quem diz que a Morenópolis é a capital de Mato Grosso.
Luca Maribondo
Umalas Bali Indonésia
lucamaribondo@gmail.com
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