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Na
sala, na penumbra, o homem muito velhinho está sozinho diante do televisor.
Lúcido ainda, apesar da idade avançada, mais de 90 anos, ele assiste a um filme
que o emociona especialmente. O som do aparelho está alto, que é pra vencer a
surdez parcial do velho. As imagens muito coloridas do moderno televisor
bruxuleiam acompanhando o chiaroscuro
das imagens do filme que continua passando na tela brilhante.
"Os
Caçadores de Obras Primas" é o título do filme, realizado por um homem que
também é ator, George Clooney, e se passa na 2ª Guerra Mundial, já nos seus
últimos meses, quando as forças nazistas, que ocuparam grande parte do
continente europeu, expropriaram uma enorme quantidade de obras de arte, que
furtam e levam em segredo para esconderijos desconhecidos localizados na Europa.
Nessa época, Adolf Hitler ainda pensava em construir o Museu do Fuhrer em Linz,
na Áustria, sua terra natal.
É
a história de Frank Stokes, vivido pelo próprio Clooney, que, com apoio
presidencial, na época Harry S. Truman, decide reunir um pequeno grupo de
especialistas —desde curadores de museus a historiadores da arte—, intitulados The Monuments Men, que é também o título
original do filme, para recuperar pelo menos uma parte das obras perdidas,
conforme os Aliados vão libertando a Europa das forças nacional-socialistas.
O
homem idoso, alemão de nascença, que na época em que se passa o filme tinha
pouco mais de vinte anos, demonstra se emocionar com algumas cenas. O filme não
é nem uma obra-prima do cinema, mas o faz estremecer quando vê cenas de obras
de arte sendo destruidas pelo fogo ou por explosivos, tudo por causa do Decreto
Nero —Nerobefehl em alemão—, que foi assinado por Hitler em 19 de março de 1945,
e ordenava a destruição da infraestrutura da Alemanha e de países ocupados para
evitar que as tropas aliadas (principalmente as soviéticas) tivessem acesso às
obras e construções da era nazista.
Foi
intitulado primeiramente de Decreto de
Demolições do Território do Reich e mais tarde foi ganhou o apelido por
lembrar o ato do imperador romano Nero, que havia mandado incendiar Roma. O Nerobefehl serviu de justificativa pra
também destruir as obras de arte tomadas pelos alemães, principalmente a
colecionadores judeus.
Agora,
o antigo militar alemão vive no Brasil, no frio sudeste catarinense, na gélida
São Joaquim. Ele assiste ao filme na confortável casa da pequena chácara
não muito longe da cidade onde mora. Na propriedade,
sua filha divorciada, engenheira-agrônoma, planta frutas, principalmente maçãs,
e flores com as quais fornece a frutarias e floristas.
Naquele
momento do filme o personagem Stokes surge em cena falando para seu grupo ao
microfone de um rádio-transmissor da época da Segunda Guerra: "esta nossa missão
nunca foi projetada para ter sucesso. Se nossos governantes fossem honestos,
eles deviam nos dizer isso. Mas eles dizem-nos que, com tantas pessoas
morrendo, quem se preocupa com a arte? Eles estão errados, porém, porque é
exatamente por isso que estamos lutando, pela nossa cultura, pelo nosso modo de
vida. Você pode exterminar toda uma geração, você pode queimar suas casas até o
chão, e de alguma forma eles ainda irão encontrar o caminho de volta. Mas se
você destruir as suas realizações, você destrói a sua história e será como se
nunca tivessem existido. Apenas cinzas pairando no ar. Isso é o que Hitler
quer. E essa é uma coisa que simplesmente não podemos permitir".
Emocionado,
o velho vê o filme até o final anticlimático. Algumas cenas o emocionaram
muito. Pareciam muito reais em toda a sua fria crueldade. A fria crueldades de
uma das guerras mais sangrentas da História da humanidade, uma história que
nunca teve um só dia de paz.
Quando
o filme acabou, o homem todo agasalhado levantou-se e foi até a pequena cozinha
da sua casa isolada, onde colocou dois saquinhos de chá preto numa caneca de
louça e os cobriu com água fervente tirada do despenser de água potável. Voltou à sala e sentou-se à escrivaninha
que usava pra escrever e mexer em seus papéis. Abriu uma das gavetas, puxou uma
pequena caixa de madeira, onde, do interior forrado de veludo azul, retirou uma
cruz de ferro.
Era
sua Eiserne Kreuz, sua condecoração
da época da guerra. Ele ganhara a medalha tão cobiçada por haver roubado a
Maddona de Bruges da França. A medalha provava que ele era um herói de guerra. A
Eiserne Kreux é, com certeza, a mais
conhecida condecoração militar do mundo —sua presença em livros de história,
filmes e documentários, só serviu para consolidar essa fama. Ali, no fundo azul
da caixa de madeira, o contraste da cruz de metal negro com o contorno prateado
adquiriu uma mística própria. Esse fascínio que ela exerce é facilmente
perceptível por qualquer um que já teve contato com algum exemplar original.
Enquanto
manuseava a medalha, o velho se lembrava da escultura que Michelangelo havia
esculpido em 1504. A representação que Michelangelo fez da Madonna com a
Criança difere significativamente de descrições mais antigas sobre o mesmo
tema. A tendência era sempre mostrar a Virgem muito piedosa, sorrindo para o
bebê em seus braços. Ao contrário, a estátua do grande artista toscano mostra
Jesus em pé, encostado na Mãe que o apoia com a mão esquerda. Ele parece estar
dando um passo para longe de Maria, em direção ao mundo. A Mãe não o segura
contra si, nem mesmo olha o Menino, como se já soubesse qual seria o seu
destino.
Apertando
fortemente a cruz de ferro na mão esquerda, o velho deixa lágrimas escorrerem
pela face engelhada. E bebe o chá, empunhando a caneca com a mão direita.
Ingere a bebida em goles curtos e lentos, sentindo o gosto amargo e quente do
chá descendo pela garganta. Ele pensa na neta que vive com ele e viajou,
deixando-o com a empregada por alguns dias. Ele lembra que a neta deverá estar
de volta no dia seguinte, segunda-feira, pela manhã.
Ainda
pensando na neta, que, naquele domingo, está completando 38 anos longe dele,
sai da casa e aprecia, da varanda, a noite clara, por causa da lua cheia, e
muito fria. Ainda aperta forte a medalha na mão esquerda. Apertava tão forte
que a mão doía muito e estava ficando lacerada; mas ele parecia não se importar
com aquele tormento. Saiu da varanda e seguiu pelo caminho gramado e orlado de
arbustos do jardim cuidado pela neta. Caminhou alguns metros e sentou-se num
tronco de jequitibá que jazia derribado num canto do jardim. E ali deixou-se
ficar, com a fita preta e branca da medalha pendurada no pulso, e olhando pra
lua pálida e brilhosa no céu sem nenhuma nuvem, o que parecia deixar o ar mais
frio...
Na
manhã seguinte, pouco depois da aurora, a neta desceu do táxi e logo que
abriu o pequeno portão de madeira deu
com o avô sentado no tronco de árvore com o corpo completamente despido.
Gelado. Branco como o mármore da Madonna de Bruges. Na face, duas lágrimas
congeladas deixaram uma fina trilha de gelo. Na mão esquerda, a Eiserne Kreux balançava com a fita preta
e branca embalada pela brisa gelada.
As
pálpebras fixamente abertas do velho mostravam que seus olhos tinham se fechado
para todo o sempre. E ela também chorou silenciosamente, olhando triste para o
copo nu do avô...
Luca Maribondo
Bali agosto/2014
lucamaribondo@gmail.com
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