segunda-feira, 4 de agosto de 2014

_A Maddonna de Bruger

Na sala, na penumbra, o homem muito velhinho está sozinho diante do televisor. Lúcido ainda, apesar da idade avançada, mais de 90 anos, ele assiste a um filme que o emociona especialmente. O som do aparelho está alto, que é pra vencer a surdez parcial do velho. As imagens muito coloridas do moderno televisor bruxuleiam acompanhando o chiaroscuro das imagens do filme que continua passando na tela brilhante.

"Os Caçadores de Obras Primas" é o título do filme, realizado por um homem que também é ator, George Clooney, e se passa na 2ª Guerra Mundial, já nos seus últimos meses, quando as forças nazistas, que ocuparam grande parte do continente europeu, expropriaram uma enorme quantidade de obras de arte, que furtam e levam em segredo para esconderijos desconhecidos localizados na Europa. Nessa época, Adolf Hitler ainda pensava em construir o Museu do Fuhrer em Linz, na Áustria, sua terra natal.

É a história de Frank Stokes, vivido pelo próprio Clooney, que, com apoio presidencial, na época Harry S. Truman, decide reunir um pequeno grupo de especialistas —desde curadores de museus a historiadores da arte—, intitulados The Monuments Men, que é também o título original do filme, para recuperar pelo menos uma parte das obras perdidas, conforme os Aliados vão libertando a Europa das forças nacional-socialistas.

O homem idoso, alemão de nascença, que na época em que se passa o filme tinha pouco mais de vinte anos, demonstra se emocionar com algumas cenas. O filme não é nem uma obra-prima do cinema, mas o faz estremecer quando vê cenas de obras de arte sendo destruidas pelo fogo ou por explosivos, tudo por causa do Decreto Nero —Nerobefehl em alemão—, que  foi assinado por Hitler em 19 de março de 1945, e ordenava a destruição da infraestrutura da Alemanha e de países ocupados para evitar que as tropas aliadas (principalmente as soviéticas) tivessem acesso às obras e construções da era nazista.

Foi intitulado primeiramente de Decreto de Demolições do Território do Reich e mais tarde foi ganhou o apelido por lembrar o ato do imperador romano Nero, que havia mandado incendiar Roma. O Nerobefehl serviu de justificativa pra também destruir as obras de arte tomadas pelos alemães, principalmente a colecionadores judeus.

Agora, o antigo militar alemão vive no Brasil, no frio sudeste catarinense, na gélida São Joaquim. Ele assiste ao filme na confortável casa da pequena chácara não  muito longe da cidade onde mora. Na propriedade, sua filha divorciada, engenheira-agrônoma, planta frutas, principalmente maçãs, e flores com as quais fornece a frutarias e floristas.

Naquele momento do filme o personagem Stokes surge em cena falando para seu grupo ao microfone de um rádio-transmissor da época da Segunda Guerra: "esta nossa missão nunca foi projetada para ter sucesso. Se nossos governantes fossem honestos, eles deviam nos dizer isso. Mas eles dizem-nos que, com tantas pessoas morrendo, quem se preocupa com a arte? Eles estão errados, porém, porque é exatamente por isso que estamos lutando, pela nossa cultura, pelo nosso modo de vida. Você pode exterminar toda uma geração, você pode queimar suas casas até o chão, e de alguma forma eles ainda irão encontrar o caminho de volta. Mas se você destruir as suas realizações, você destrói a sua história e será como se nunca tivessem existido. Apenas cinzas pairando no ar. Isso é o que Hitler quer. E essa é uma coisa que simplesmente não podemos permitir".

Emocionado, o velho vê o filme até o final anticlimático. Algumas cenas o emocionaram muito. Pareciam muito reais em toda a sua fria crueldade. A fria crueldades de uma das guerras mais sangrentas da História da humanidade, uma história que nunca teve um só dia de paz.

Quando o filme acabou, o homem todo agasalhado levantou-se e foi até a pequena cozinha da sua casa isolada, onde colocou dois saquinhos de chá preto numa caneca de louça e os cobriu com água fervente tirada do despenser de água potável. Voltou à sala e sentou-se à escrivaninha que usava pra escrever e mexer em seus papéis. Abriu uma das gavetas, puxou uma pequena caixa de madeira, onde, do interior forrado de veludo azul, retirou uma cruz de ferro.

Era sua Eiserne Kreuz, sua condecoração da época da guerra. Ele ganhara a medalha tão cobiçada por haver roubado a Maddona de Bruges da França. A medalha provava que ele era um herói de guerra. A Eiserne Kreux é, com certeza, a mais conhecida condecoração militar do mundo —sua presença em livros de história, filmes e documentários, só serviu para consolidar essa fama. Ali, no fundo azul da caixa de madeira, o contraste da cruz de metal negro com o contorno prateado adquiriu uma mística própria. Esse fascínio que ela exerce é facilmente perceptível por qualquer um que já teve contato com algum exemplar original.

Enquanto manuseava a medalha, o velho se lembrava da escultura que Michelangelo havia esculpido em 1504. A representação que Michelangelo fez da Madonna com a Criança difere significativamente de descrições mais antigas sobre o mesmo tema. A tendência era sempre mostrar a Virgem muito piedosa, sorrindo para o bebê em seus braços. Ao contrário, a estátua do grande artista toscano mostra Jesus em pé, encostado na Mãe que o apoia com a mão esquerda. Ele parece estar dando um passo para longe de Maria, em direção ao mundo. A Mãe não o segura contra si, nem mesmo olha o Menino, como se já soubesse qual seria o seu destino.

Apertando fortemente a cruz de ferro na mão esquerda, o velho deixa lágrimas escorrerem pela face engelhada. E bebe o chá, empunhando a caneca com a mão direita. Ingere a bebida em goles curtos e lentos, sentindo o gosto amargo e quente do chá descendo pela garganta. Ele pensa na neta que vive com ele e viajou, deixando-o com a empregada por alguns dias. Ele lembra que a neta deverá estar de volta no dia seguinte, segunda-feira, pela manhã.

Ainda pensando na neta, que, naquele domingo, está completando 38 anos longe dele, sai da casa e aprecia, da varanda, a noite clara, por causa da lua cheia, e muito fria. Ainda aperta forte a medalha na mão esquerda. Apertava tão forte que a mão doía muito e estava ficando lacerada; mas ele parecia não se importar com aquele tormento. Saiu da varanda e seguiu pelo caminho gramado e orlado de arbustos do jardim cuidado pela neta. Caminhou alguns metros e sentou-se num tronco de jequitibá que jazia derribado num canto do jardim. E ali deixou-se ficar, com a fita preta e branca da medalha pendurada no pulso, e olhando pra lua pálida e brilhosa no céu sem nenhuma nuvem, o que parecia deixar o ar mais frio...

Na manhã seguinte, pouco depois da aurora, a neta desceu do táxi e logo que abriu  o pequeno portão de madeira deu com o avô sentado no tronco de árvore com o corpo completamente despido. Gelado. Branco como o mármore da Madonna de Bruges. Na face, duas lágrimas congeladas deixaram uma fina trilha de gelo. Na mão esquerda, a Eiserne Kreux balançava com a fita preta e branca embalada pela brisa gelada.


As pálpebras fixamente abertas do velho mostravam que seus olhos tinham se fechado para todo o sempre. E ela também chorou silenciosamente, olhando triste para o copo nu do avô...

Luca Maribondo
Bali agosto/2014
lucamaribondo@gmail.com

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