segunda-feira, 14 de julho de 2014

_Aos governantes, a vaia

Parece que as pessoas perderam a noção do mundo em que vivem. Há um bocado de gente indignada com as vaias dadas à presidente da República, Dilma Rousseff, a jogadores de futebol argentinos e outras celebridades no Maracanã durante a final da Copa 2014, no domingo que passou. E tem gente escrevendo muita barbaridade por conta disso.

Li coisas do tipo “aqueles que vaiaram presidenta (sic) da república certamente batem nas mães, esposas, filhas, namoradas, amantes, professoras e prostitutas... Esse não é o povo brasileiro... Essa turma formam (sic) uma corja que são os verdadeiros responsáveis pela violência em todos os graus contra as mulheres.” Outro: “a turma que vaiaram (sic) a presidente Dilma Rousseff não é o povo brasileiro”. Que tipo de ilação é essa? Você vaia, logo bate nas mulheres da sua família? Que tipo de homem é esse? Uma besta-fera?

Alguns mentem descaradamente: “o que leva alguém a vaiar os argentinos em sua derrota... Justamente eles que são os maiores parceiros comerciais do nosso país? E aplaudem os alemães, que são um dos principais países a vetarem os nossos produtos na Europa.” (sic). Não é verdade: tanto germânicos como platinos estão entre os cinco maiores parceiros comerciais do Brasil. E os maiores parceiros são os chineses.

Considero a vaia legítima. Uma legítima demonstração de desagrado, desaprovação, desprezo, geralmente expressa coletivamente, por meio de ruídos como gritos e assovios. Penso que é direito de qualquer grupo vaiar algo que o desagrada. Ninguém deve ficar calado diante de qualquer evento que o atanaza e o incomoda. Principalmente, se são “otoridades”.

Nelson Rodrigues, grande escritor, dramaturgo, cronista e filósofo popular brasileiro, definiu a vaia com a autoridade de quem realmente conhecia o povo tupiniquim, com rara ironia e eloquencia: “a grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.” E corrompem mesmo, até por que essa admiração se transforma em bajulação.

Nos últimos tempos, surgiu uma figura radical, o homem-bomba, praticante de atentados-suicidas, prova de que ainda existe gente disposta a morrer por uma causa. O único problema é que, em geral, ele está disposto a morrer por causas que nem sempre são do agrado da maioria —e, ainda por cima, mata gente que nada tem a ver com suas causas.

Não dá pra mensurar o valor da vaia. A vaia se traduz no inconformismo, no descaso e o pouco caso, no desrespeito, no desacato, na desfeita da platéia em relação ao pobre de espírito, no artista mambembe. E do povo diante dos governantes ineptos, corruptos e oportunistas. A vaia prostra o vaiado. Mesmo quando não tem caráter, este se dobra, se esconde, pois a vaia assusta, produz medo. Desde a antiguidade isso já era do conhecimento do cidadão, que vaiava políticos e governantes. Era a maneira de desmistificar, de zombar, de rir da farsa: ridendo dicere verum, rindo diz-se a verdade. Arlequim trouxe um corolário para a máxima: ridendo castigat mores, castiga-se os costumes com o riso, a ironia, o deboche.


As duas armas mais letais contra ditadores e maus governantes ainda são o humor e a vaia, que muitas vezes caminham juntos —vaia leva à catarse; a mordacidade acaba com a mordaça. O poder do humor e da vaia são devastadores, quase como um flato pestilento num elevador lotado num dia quente. Não se respeita mais nada. Os vaiadores merecem mais respeito. Os governantes, não!

Luca Maribondo
Umalas / Bali / 14 de julho/2014

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