Parece que as pessoas perderam a noção do mundo em que
vivem. Há um bocado de gente indignada com as vaias dadas à presidente da República,
Dilma Rousseff, a jogadores de futebol argentinos e outras celebridades no
Maracanã durante a final da Copa 2014, no domingo que passou. E tem gente
escrevendo muita barbaridade por conta disso.
Li coisas do tipo “aqueles que vaiaram presidenta (sic)
da república certamente batem nas mães, esposas, filhas, namoradas, amantes, professoras
e prostitutas... Esse não é o povo brasileiro... Essa turma formam (sic) uma
corja que são os verdadeiros responsáveis pela violência em todos os graus
contra as mulheres.” Outro: “a turma que vaiaram (sic) a presidente Dilma
Rousseff não é o povo brasileiro”. Que tipo de ilação é essa? Você vaia, logo
bate nas mulheres da sua família? Que tipo de homem é esse? Uma besta-fera?
Alguns mentem descaradamente: “o que leva alguém a vaiar os
argentinos em sua derrota... Justamente eles que são os maiores parceiros
comerciais do nosso país? E aplaudem os alemães, que são um dos principais
países a vetarem os nossos produtos na Europa.” (sic). Não é verdade: tanto germânicos
como platinos estão entre os cinco maiores parceiros comerciais do Brasil. E os
maiores parceiros são os chineses.
Considero a vaia legítima. Uma legítima demonstração de
desagrado, desaprovação, desprezo, geralmente expressa coletivamente, por meio
de ruídos como gritos e assovios. Penso que é direito de qualquer grupo vaiar
algo que o desagrada. Ninguém deve ficar calado diante de qualquer evento que o
atanaza e o incomoda. Principalmente, se são “otoridades”.
Nelson Rodrigues, grande escritor, dramaturgo, cronista e
filósofo popular brasileiro, definiu a vaia com a autoridade de quem realmente
conhecia o povo tupiniquim, com rara ironia e eloquencia: “a grande vaia é mil
vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os
admiradores corrompem.” E corrompem mesmo, até por que essa admiração se transforma
em bajulação.
Nos últimos tempos, surgiu uma figura radical, o homem-bomba,
praticante de atentados-suicidas, prova de que ainda existe gente disposta a
morrer por uma causa. O único problema é que, em geral, ele está disposto a
morrer por causas que nem sempre são do agrado da maioria —e, ainda por cima,
mata gente que nada tem a ver com suas causas.
Não dá pra mensurar o valor da vaia. A vaia se traduz no inconformismo,
no descaso e o pouco caso, no desrespeito, no desacato, na desfeita da platéia
em relação ao pobre de espírito, no artista mambembe. E do povo diante dos
governantes ineptos, corruptos e oportunistas. A vaia prostra o vaiado. Mesmo
quando não tem caráter, este se dobra, se esconde, pois a vaia assusta, produz
medo. Desde a antiguidade isso já era do conhecimento do cidadão, que vaiava
políticos e governantes. Era a maneira de desmistificar, de zombar, de rir da
farsa: ridendo dicere verum, rindo
diz-se a verdade. Arlequim trouxe um corolário para a máxima: ridendo castigat mores, castiga-se os
costumes com o riso, a ironia, o deboche.
As duas armas mais letais contra ditadores e maus
governantes ainda são o humor e a vaia, que muitas vezes caminham juntos —vaia
leva à catarse; a mordacidade acaba com a mordaça. O poder do humor e da vaia são
devastadores, quase como um flato pestilento num elevador lotado num dia
quente. Não se respeita mais nada. Os vaiadores merecem mais respeito. Os
governantes, não!
Luca Maribondo
Umalas / Bali / 14 de julho/2014
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