Nos raros momentos em que, no Brasil, o povo vai para as ruas buscar melhorias pra sua vida social e política, um assunto recorrente sempre vem à tona: a eterna caixa
preta da corrupção —e a palavra cínico e seus derivados aparecem com notável
freqüência na mídia.
Originalmente, cínico é o adepto da doutrina dos
filósofos gregos Antístenes de Atenas (444-365 a.C) e Diógenes de Sinope
(400-325 a.C.), que se caracteriza especialmente pela oposição aos valores
sociais e culturais em vigor, com base na convicção de que não é possível
conciliar leis e convenções estabelecidas com a vida natural autêntica e
virtuosa. É o que está no Dicionário Houaiss.
No mesmo dicionário, a gente fica sabendo que, por
extensão de sentido, cínico é aquele que afronta ostensivamente as convenções e
conveniências morais e sociais; ou aquele que é dado a atos e/ou ditos imorais,
impudicos, escandalosos; desavergonhado, debochado, sarcástico. Mais ainda: é
aquele que fala ou age com descaso, impudência, falta de escrúpulos; petulante,
atrevido. Muita coisa, não?
Há alguns anos, recebi, através de email, texto anônimo
no qual o autor faz uma alentada defesa do cinismo. Uso partes desse texto e
algumas idéias minhas pra também propugnar pelo cinismo. Os filósofos cínicos,
de acordo com Bertrand Russel em sua “História da Filosofia Ocidental” se
perguntavam: “como podem os homens ser virtuosos num mundo mal, ou felizes num
mundo de sofrimento?”. Serve de base teórica para os políticos que se defendem,
quando acusados de corrupção, argumentando que “não sou o único... Todos fazem”
ou não?
Desde 1889 —67 anos depois da independência—, ano da
fundação da República brasileira —implantada a partir de um golpe militar— os
eventos políticos tupiniquins caracterizam-se por um grau de corrosão que beira
o absurdo. Houve momentos em que a corrosão foi maior, como quando aconteceu o
golpe militar de 1964, ou na posse de João Goulart, ou ainda nas estranhas
mortes de Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves, na deposição de Fernando
Collor, na aprovação da reeleição de Fernando Henrique Cardoso.
Cronistas e analistas que estão na lida historiando os
costumes de nossos representantes nos três poderes, principalmente no
Parlamento, sempre repetem uma palavra mágica: a atitude e a fala dos
parlamentares e dos agentes do governo, para não falar nas togas, têm sido
alcunhadas de cínicas. Em defesa da verdade factual e histórica, é preciso
dizer que isto é de uma injustiça gritante.
Os cínicos —os primeiros cínicos, como os já citados
Antístenes de Atenas e Diógenes de Sinope— receberam essa denominação (do latim
cynicus, de origem grega, para designar o cachorro) porque mordiam como cães
ferozes os hipócritas e os poderosos. O modo cínico de agir é o exato oposto do
empregado pelos senhores do Parlamento e dos outros poderes da República
brasileira. Aliás, pra onde vão os líderes políticos durante as manifestações
de 2013?
Padre Antonio Vieira, no atualíssimo “Sermão do Bom
Ladrão”, elogia o cínico Diógenes de Sínope, “que tudo via com mais aguda vista
do que a dos outros homens”, quando ele, apontando o dedo para os “ministros da
Justiça” que levavam à forca alguns ladrões, “começou a bradar: ‘lá vão os
ladrões grandes enforcar os pequenos’”. Quem vive nesta segunda década do
século 21 e testemunha toda sorte de gente em busca de interesses
inconfessáveis, percebe a justeza e a atualidade dessas frases do bom jesuíta
Vieira: austero, inspiradas na conduta cínica.
Os dois filósofos gregos ensinavam que a alma humana é
imortal, sendo preciso bem administrá-la, pois a sua estrutura, embora mais
elevada do que a do corpo, possui uma enorme fragilidade. O autoconhecimento
mostra-se estratégico, bem como a vida em perfeita amizade (“um amigo é uma só
alma em dois corpos”). Dentre os empecilhos à boa amizade, ensinam os cínicos,
estão a inveja, a lisonja, a ignorância e as humilhações recíprocas. Contra
elas, o treino ascético é fundamental. Quem se acostuma a bajular o próprio
corpo logo estará apto, na alma, a ser bajulado pelo primeiro inimigo
disfarçado.
Mais: a felicidade só pode ser atingida se resultar da
mais inflexível justiça e da mais rigorosa liberdade. Não depender dos
confortos ilusórios trazidos pela riqueza e pelo mando político é o modo de ser
livre e de conquistar a plena autarcia, o domínio sobre si mesmo. Sem ela, a
escravidão ronda almas e corpos. Assim falavam os cínicos. Disso resulta a
fraqueza da língua.
A palavra livre, segundo os cínicos, é a mais bela das
conquistas humanas. Nem preso aos ricos e poderosos nem sujeito à multidão, o
verbo consciente recusa a lisonja pessoal e a demagogia. Do cínico Diógenes é a
frase célebre: “quando sou aplaudido por muitos, certamente devo examinar-me
para saber se não disse uma bobagem”. A liberdade assim percebida se baseia na
ascese. A virtude ascética fez o filósofo jogar longe o seu caneco ao ver um
menino bebendo da fonte com a palma da mão.
Apenas o necessário à vida, sem luxos, sem pedantismos e
sem lauréis. Essa é a doutrina cínica. Os cínicos ajudam-nos, até hoje, a
romper com a hipocrisia da fala “politicamente correta”. Tamanha potência da
virtude fez o pensador gritar ao poderoso Alexandre: “Desejo somente que não me
tires a luz do sol”. Ah, se os nossos governantes e políticos fossem de fato
cínicos! Todos os ensinamentos dessa escola resistiriam ao tempo e aos regimes
políticos. O prisma negativo que essa escola recebeu foi dado justamente pelos
ardilosos donos do poder, político ou religioso. A calúnia perdura até os
nossos dias, em proveito dos inimigos da disciplina, da liberdade de atos e
palavras e dos que amam a riqueza (sobretudo a pública) para seu conforto e
ostentação.
O cão é símbolo, na cultura grega, da amizade política
mais nobre. Platão afirma que os dirigentes da República devem ser como os
cães: gentis e leais para com os de casa; ferozes contra os inimigos. E o
tirano seria como o lobo, que devora os bens dos cidadãos em proveito próprio.
Daí a tese de Jean Bodin sobre a tirania: “Tirano é o que usa os bens dos
súditos como se fossem seus”. Vivemos em contínua tirania neste país, mesmo hoje,
apesar da aparente democracia. Tudo entre nós está invertido e pervertido. A
começar pelo tom errado que damos a uma das mais rigorosas éticas filosóficas
do Ocidente, a cínica.
Os políticos, donos do poder, lobos, hienas,
urubus-ministros e abutres —bestas-feras no dizer de um araponga ilustre da
Abin (Agência Brasileira de Inteligência[?])— que dominam o picadeiro da
cinquentenária Brasília, se distanciam dos cínicos. Eles são hipócritas e
corruptos, amolecidos nos costumes e empachados de riqueza roubada. Se não
temos a bravura dos cínicos, pelo menos não aceitemos as calúnias contra eles,
que apenas servem para absolver os seus alvos, os relaxados na moral que
enodoam as instituições públicas brasileiras.
Vivemos sob um governo que chegou ao poder através de um
partido que se arvorava em dono da verdade e administrador da ética; que nos
vendeu por mais de vinte anos a idéia de que era possível mudar tudo pra
melhorar o País. O jornalista norte-americano Henry Louis Mencken já dizia que
“o pior governo é o mais moral. Um governo composto de cínicos é frequentemente
mais tolerante e humano. Mas, quando os fanáticos tomam o poder, não há limite
para a opressão”. E parece ter toda a razão. O que se vê agora é que os atos
daqueles que exercem o poder hoje no Brasil nos fazem pensar que todo homem
decente deve ter vergonha do governo sob o qual vive.
E, a propósito das manifestações que agora acontecem no
Brasil, é preciso fazer algumas perguntas cínicas: 1) será que a revolta
pública dará algum resultado prático e revolucionário?; 2) a quem interessam de
fato os protestos? 3) o que fará a presidenta Dilma Roussef, que um dia pegou
em armas pra lutar por mudanças?; 4) onde estão os “líderes” políticos? 5) é
possível fazer uma revolução sem um líder que guie as massas?
Luca Maribondo
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