quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

[[A ignorância ao alcance de todos

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Assim como a ignorância, o analfabetismo é um fenômeno cultural e político de grande importância para toda a humanidade, que existe desde a pré-história, até porque na pré-história todos eram ignorantes mesmo. Os primeiros analfabetos, segundo Diodorus, andavam nus, não cortavam os cabelos nem as unhas e comiam carne crua —em compensação foram eles que inventaram o churrasco.

Os gregos, que zombavam dos analfabetos, os apelidaram de analfas ou comedores de analfa, leguminosa que nascia em Atlântida, e que dava ótimo tempero para os churrascos primordiais. Outros, no entanto, afirmam que os analfabetos se originaram na Idade Média, constituindo uma seita hermética liderada pelo monge Ignorus Ignacius, chamada analfas.

Ignorus granjeou um grande número de adeptos por toda a Europa, todos eles levando uma vida das mais ascéticas: bebiam apenas água, comiam apenas frutas, verduras e legumes, acreditavam na total transitoriedade da palavra (a língua é dinâmica, repetiam sempre) e recusavam-se ler ou escrever fosse o que fosse. Cada vez mais os analfas se tornavam mais numerosos e adquiriam grande prestígio.

Corresponde à seita dos analfas muita gente do mundo de hoje. Os analfas estão em todos os lugares: na mídia, na política, no ciberespaço, no desporto e até na televisão. Os seguidores de Ignorus mantêm o hábito do jejum regular ou intermitente, têm prole numerosa, acordam muito cedo pra deitar mais cedo ainda, não lêem livros, jornais ou qualquer outro material impresso.

Por conta disso, de maneira geral, são fiéis, equilibrados, harmoniosos, castos, sóbrios, incapazes de se meter em atividades que alimentam as paixões baixas do homem, tais como a economia, a política, a salvação do próximo, os programas de tv, o onanismo, os sites eróticos da Internet e outras.

Quem são os analfabetos? Entre os seguidores da seita dos analfas ou analfabetos, são mencionados quase todos os seres humanos no início de suas vidas, alguns habitantes dos romances populares (que empregam o pensamento direto), alguns santos, alguns estrangeiros, e um certo número de pessoas registradas como jornalistas profissionais no Ministério do Trabalho.

O analfabetismo é também difundido entre os animais, especialmente os mamíferos, havendo, contudo, exceções. Entre estas aponta-se a anta do fazendeiro Rebouças, que atuou por algum tempo no Pantanal de Mato Grosso do Sul, e que apontava os nomes dos espectadores, separando letras de cartolina, espalhadas no pasto, com suas patas dianteiras. O talento da anta, aliás, chamou a atenção de algumas pessoas gradas, que sentindo nela uma vocação excepcional, conseguiram-lhe uma bolsa de estudos no Ministério da Educação pré-Enem.

Foi assim possibilitado à anta (com grande tristeza de seu dono, o fazendeiro Rebouças) terminar seus estudos fundamentais, completar o curso médio e prestar, inclusive, os exames do Enem. O destino trágico do quadrúpede em pauta vem provar, mais uma vez que o analfabetismo é o estado que melhor condiz com o temperamento pacífico dos mamíferos.

Ao terminar seus estudos, a anta radicou-se em Cuiabá, capital do Mato Grosso (o do norte), fez concurso, foi nomeado para a Funasa e desempenha até hoje, nesta fundação, as modestas funções de analista de sistemas (nível sac). Ninguém mais se espanta com ela, ninguém mais se interessa em comparecer quando se apresenta em alguma cidade do interior.

E é natural que assim seja: pois a anta, enquanto anta, era evidentemente
uma gênia, mas uma vez alfabetizada e educada de acordo com os programas do Ministério da Educação, passou a ser apenas uma anta-funcionária, afundando para sempre na rotina e na mediocridade do serviço público.

Outro caso de mamífero excepcional foi a garça Acolitus,
que gazeava nitidamente todas as letras do alfabeto, inclusive o k, o w e o y, e que chegou a ser examinado por autoridades médicas da Hospital Albert Einstein, de São Paulo. (Era portadora de uma curiosa lesão cardíaca.)

Desistindo de encontrar explicação para o estranho fenômeno, os cientistas, um tanto irritados, soltaram Acolitus que, mais esperta que a anta acima, conseguiu um bom emprego na Rede Brasil de Televisão, para fazer a previsão do tempo, trabalho que realizava com enorme proficiência, pois contava com a ajuda das suas asas Ra verificiar algumas situações in loco.

Embora ninguém saiba exatamente porque, o analfabetismo é considerado uma seita das mais nocivas, um mal que urge erradicar como se fêz com a malária, a gonorréia e a moralidade administrativa. A campanha contra o analfabetismo é insuflada e agitada pelo inimigo natural do analfabeto: o ser alfabetizado.

Caracteriza-se, êste último, pela capacidade monumental, não de ler tudo que se escreve, mas também, de escrever quase tudo que se . O ser alfabetizado, hoje em dia, insinua-se em quase todos os setores da vida pública e particularinclusive na política, embora hajam dúvidas a respeito. É possível encontrá-lo nos escritórios, nas repartições, nas redações, nas escolas, até nas Forças Armadas. Infiltra-se no clero, nos esportes, nas artes, na mídia; mesmo em certas camadas da alta administração e do Governo é possível topar, não com um, mas com milhões de seres alfabetizados.

A guerra que os alfabetizados movem aos analfabetos tem sido da mais extrema violência; uma após outra, caem as cidadelas destes, seus generais são aprisionados, seus soldados sujeitos a um intenso tratamento de doutrinação política ou brain-washing, como dizem os americanos.

O resultado é que poucas pessoas podem, agora, manter-se fiéis ao analfabetismo, sem que se exponham à irritada agressão de um alfabeto, brandido tenazmente por um alfabetizado, orgulhoso de sua função social. E assim se extingue mais uma daquelas antigas e saborosas tradições brasileiras, tão do gosto do conhecido escritor Paulo Coelho. Em verdade, um meio de defesa à disposição do analfabeto, uma arma de que pode lançar mão para repelir a furiosa ofensiva dos alfabetizados: a alfabetização em massa e compulsória.

O analfabeto não quer mal ao alfabetizado, que foi seu irmão. Quer apenas não ser excessivamente importunado, para poder, talvez, converter-se, livre de coação. Pois o alfabetizado, como o evangélico novo, o informatizado novo, o psicanalisado novo ou o recém-casado, procura converter todo mundo à sua , e com isso acaba transformando-se num grande chato.

Na realidade, deve-se meditar muito, antes de se dar este passo definitivo e irrevogável, que. fará com que o cidadão passe a ler tudo que se publica, hoje em dia, em livros, jornais, revistas.e cartazes. É de suma importância que o analfa seja instruído no sentido de saber o que está à sua espera a partir do momento em que aprendeu o alfabeto, em que é capaz de distinguir um L de I, em que é capaz de diferenciar um número de um algarismo.

E se for honestamente instruído, é possível que recue no derradeiro instante, decidindo por não tomar contato com o mundo exótico, sanguinário e selvagem das pessoas que sabem ler. Afinal, todo analfabeto é, no fundo, muito presopreso por tráfico de drogas, por vadiagem e até por corrupção ativa e/ou passiva. Assim, assim, a ignorância permanecerá ao alcance de todos.

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