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Os gregos , que zombavam dos analfabetos , os apelidaram de analfas ou comedores de analfa, leguminosa que nascia em Atlântida, e que dava ótimo tempero para os churrascos primordiais . Outros , no entanto , afirmam que os analfabetos se originaram na Idade Média , constituindo uma seita hermética liderada pelo monge Ignorus Ignacius, chamada analfas.
Ignorus granjeou um grande número de adeptos por toda a Europa, todos eles levando uma vida das mais ascéticas: bebiam apenas água , comiam apenas frutas , verduras e legumes , acreditavam na total transitoriedade da palavra (a língua é dinâmica , repetiam sempre ) e recusavam-se ler ou escrever fosse o que fosse. Cada vez mais os analfas se tornavam mais numerosos e adquiriam grande prestígio .
Corresponde à seita dos analfas muita gente do mundo de hoje . Os analfas estão em todos os lugares : na mídia , na política , no ciberespaço , no desporto e até na televisão . Os seguidores de Ignorus mantêm o hábito do jejum regular ou intermitente , têm prole numerosa , acordam muito cedo pra deitar mais cedo ainda , não lêem livros , jornais ou qualquer outro material impresso .
O analfabetismo é também difundido entre os animais , especialmente os mamíferos , havendo, contudo , exceções . Entre estas aponta-se a anta do fazendeiro Rebouças, que atuou por algum tempo no Pantanal de Mato Grosso do Sul , e que apontava os nomes dos espectadores , separando letras de cartolina , espalhadas no pasto , com suas patas dianteiras . O talento da anta , aliás , chamou a atenção de algumas pessoas gradas, que sentindo nela uma vocação excepcional , conseguiram-lhe uma bolsa de estudos no Ministério da Educação pré-Enem.
Foi assim possibilitado à anta (com grande tristeza de seu dono , o fazendeiro Rebouças) terminar seus estudos fundamentais , completar o curso médio e prestar , inclusive , os exames do Enem. O destino trágico do quadrúpede em pauta vem provar , mais uma vez que o analfabetismo é o estado que melhor condiz com o temperamento pacífico dos mamíferos .
Ao terminar seus estudos , a anta radicou-se em Cuiabá, capital do Mato Grosso (o do norte ), fez concurso , foi nomeado para a Funasa e desempenha até hoje , nesta fundação , as modestas funções de analista de sistemas (nível sac). Ninguém mais se espanta com ela , ninguém mais se interessa em comparecer quando se apresenta em alguma cidade do interior .
E é natural que assim seja: pois a anta , enquanto anta , era evidentemente
uma gênia , mas uma vez alfabetizada e educada de acordo com os programas do Ministério da Educação , passou a ser apenas uma anta-funcionária, afundando para sempre na rotina e na mediocridade do serviço público .
Desistindo de encontrar explicação para o estranho fenômeno , os cientistas , um tanto irritados, soltaram Acolitus que , mais esperta que a anta acima , conseguiu um bom emprego na Rede Brasil de Televisão , para fazer a previsão do tempo , trabalho que realizava com enorme proficiência, pois contava com a ajuda das suas asas Ra verificiar algumas situações in loco .
Caracteriza-se, êste último , pela capacidade monumental , não só de ler tudo que se escreve, mas também , de escrever quase tudo que se lê . O ser alfabetizado, hoje em dia , insinua-se em quase todos os setores da vida pública e particular —inclusive na política , embora hajam dúvidas a respeito . É possível encontrá-lo nos escritórios , nas repartições , nas redações , nas escolas , até nas Forças Armadas . Infiltra-se no clero , nos esportes , nas artes , na mídia ; mesmo em certas camadas da alta administração e do Governo é possível topar , não com um , mas com milhões de seres alfabetizados.
A guerra que os alfabetizados movem aos analfabetos tem sido da mais extrema violência ; uma após outra , caem as cidadelas destes, seus generais são aprisionados, seus soldados sujeitos a um intenso tratamento de doutrinação política ou brain-washing, como dizem os americanos .
O resultado é que poucas pessoas podem, agora , manter-se fiéis ao analfabetismo, sem que se exponham à irritada agressão de um alfabeto , brandido tenazmente por um alfabetizado, orgulhoso de sua função social . E assim se extingue mais uma daquelas antigas e saborosas tradições brasileiras, tão do gosto do conhecido escritor Paulo Coelho . Em verdade , só há um meio de defesa à disposição do analfabeto , uma só arma de que pode lançar mão para repelir a furiosa ofensiva dos alfabetizados: a alfabetização em massa e compulsória .
O analfabeto não quer mal ao alfabetizado, que já foi seu irmão . Quer apenas não ser excessivamente importunado, para poder , talvez , converter-se, livre de coação . Pois o alfabetizado, como o evangélico novo , o informatizado novo , o psicanalisado novo ou o recém-casado, procura converter todo mundo à sua fé , e com isso acaba transformando-se num grande chato .
Na realidade , deve-se meditar muito , antes de se dar este passo definitivo e irrevogável , que . fará com que o cidadão passe a ler tudo que se publica, hoje em dia , em livros , jornais , revistas .e cartazes . É de suma importância que o analfa seja instruído no sentido de saber o que está à sua espera a partir do momento em que aprendeu o alfabeto , em que é capaz de distinguir um L de I, em que é capaz de diferenciar um número de um algarismo .
E se for honestamente instruído, é possível que recue no derradeiro instante , decidindo por não tomar contato com o mundo exótico , sanguinário e selvagem das pessoas que sabem ler . Afinal , todo analfabeto é, no fundo , muito preso —preso por tráfico de drogas , por vadiagem e até por corrupção ativa e/ou passiva . Assim , só assim , a ignorância permanecerá ao alcance de todos .
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