quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

[[As cultuadas pererecas

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Tem que era uma tarefa extremamente árdua. Precisava convencer 343.719 pessoas a se interessar por arte moldava, colecionar pererecas, coçar a orelha com o mindinho, olhar para ambos os lados simultaneamente a curtos intervalos, e a detestar telemóveis —ou telefones celulares, como eram mais conhecidos no Brasil. Tinha uma semana para isso. Exatos sete dias pra cumprir a tarefa.

Calculara tudo muito bem com o auxílio de um soroban. De acordo com os censos diários, a população adulta, isto é, de mais de treze anos, seria, dentro de sete dias, de 1.344.873 indivíduos. Logo, se pudesse convencer 343.719, chegaria a 25% mais um, e poderia, tranqüilamente, invocar o direito de dissidência cidadã das minorias: era o que dizia a lei.

Contudo, isso não tornava as coisas mais fáceis. Dispunha de sete dias, cada um com 21:13 horas (não podia esperar que os responsáveis lhe permitissem atuar sobre os mecanismos oníricos padronizados durante as duas horas e quarenta e sete minutos de sono). Portanto, precisava convencer uma média de 35 pessoas por minuto. havia uma possibilidade: a propaganda. Dinheiro não lhe faltava. Afinal, não fora ele o inventor do mal de Alzheimer?

Procurou uma agência de publicidade, das maiores, que sabia não estar ligada aos poderosos. Seu pedido, no entanto, foi rejeitado por 673,2 votos contra 2,7 e os dissidentes, totalizando apenas 23,76% do total, foram imediatamente destituídos de seus cargos e presos de maneira irreversível e tiririca.

Os minutos passavam. Jerubal Paschoal, ex-chefe do pessoal, tinha consciência da rapidez com que deveria agir. O recorde de conversões pela propaganda, estabelecido em 1919, era de 37,4 adesões/minuto. E não podia esperar resultados melhores. Era preciso trabalhar depressa.

Procurou Noélia Natal, sua comborça de plantão, que se encarregou de contratar redatores, designers, chargistas, coloristas, cartazistas, impressores, modelos, cameramen, repórteres de tv etc., etc., etc. O próprio Jerubal orientaria a campanha. Numa primeira reunião, falou a todos, tentando passar o briefing, orientar o brainstorm, para transmitir-a todos o espírito da coisa: contou das delícias que uma multidão de pererecas de todas as cores pode proporcionar ao colecionador. Do encanto da arte moldava e sua superioridade sobre os rituais sincréticos.

Falou durante 2:31:47 horas, sempre tirando cera dos ouvidos com o mindinho e abrindo os eixos dos olhos. na segunda reunião, uma vez preparados todos os espíritos, é que abordou a questão dos telemóveis. Mesmo assim, teve dificuldades. Surgiram problemas éticos e morais levantados por um idoso idealista da segunda legião, que parara a cadeira de rodas numa vaga reservada para adolescentes crackistas, que pôde ser fuzilado após um aumento geral dos impostos, o que afinal não é tão difícil pro governo.

Cronometradas 5:23:17 horas antes da hora H, a campanha foi finalmente detonada. Jerubal Paschoal, jogando tudo ou nada, tornara-se asquerosamente ousado. E foi a campanha mais agressiva de que jamais se teve notícia. Além dos usuais autidores com atores globais afirmando "eu também adoro pererecas", programas especiais no rádio e na tv, cartuns nos jornais, hot sites na Internet, Jerubal Paschoal chegou a requintes: com o auxílio de um programador de site invisível e uma viciada em MSN nua, libertou 649 espécies diferentes de pererecas no Campão, algumas delas com microchips em forma de anel nas narinas.

E para fazer frente os custos exorbitantes, que as pererecas haviam sido retiradas do seu acervo particular, colocou à venda receptáculos próprios para encerrá-las, ricamente ilustrados, para os colecionadores. Dra. Ana Morphics, a podologista, recebeu um régio pagamento para afirmar em público que pisar fluídos corpóreos de perereca era ao mesmo tempo repousante e ajudava na cura da infertilidade crônica.

Um dedal para polegares, com odor de camarão no bafo (que, como se sabe, é ótimo para ser deglutido acompanhado de aguardente malgaxe) foi rapidamente fabricado em série, de acordo com processo inventado por Paulus Bernardus. Nunca ficou provado, mas parece ter sido uma das equipes publicitárias de Jerubal Paschoal quem facilitou a fuga de chefões do tráfego de azeite de dendê do Morro dos Macacos.

Para Marcus Ambrósio, foram horas de intensa expectativa, enquanto um centro de processamento de dados, mantido secreto em uma ampla câmara subterrânea sob o Estádio do Morenão para não afetar a campanha, calculava minuciosamente os resultados. Mas, a todo momento chegavam boas notícias: os Grupamentos de Bombeiros de Cacha Prego (BA) substituíra a continência pelo mindinho na orelha; os lupanares solicitavam novas remessas de pererecas em invólucros plastificados, semelhantes a condons.

Até um oportunista e alpinista social registrara a patente de um processo para reproduzir arte moldava em plástico reciclado e em papel higiênico sem uso; o presidente da Yamaha, fábrica de instrumentos musicais que produzia motos com sobras de pianos, saxofones e tamborins, declarava-se arrependido, e prometia adaptar suas máquinas que passariam a produzir saquinhos de lixo para tanques de guerras e caveirões. Esse saquinhos teriam de ser reforçados, visto que há muito material corrosivo num veículo bélico.

Quando chegou a hora, Jerubal Paschoal caminhou pela praça aplaudido pela multidão: o povo o reconhecia como o maior colecionador de pererecas do país. Todos coçavam os ouvidos com o mindinho pra ele. Estava esperançoso, mas não tranqüilo. Os dados demonstravam um excelente índice de conversões quanto às pererecas, o coçar...

Mas havia renitentes quanto à arte moldava e os celulares. Soubera mesmo que uma contra-campanha estava se iniciando, patrocinada pelo Ministério dos Anuros Insetívoros pela manutenção dos padrões fascistas de cidadania; e outra, da Yamaha, cujas declarações anteriores do presidente destinavam-se somente ao Departamento de Besteiras que Assolam o Pais (Debeaspa).

Antes de subir os degraus da ambulatório do Departamento do Pessoal, recebeu de um hacker as últimas estatísticas: o índice mais baixo, o dos inimigos dos celulares, chegava a 697.133 indivíduos. Vencera. Na sala, observou com agrado o urologista oficial a coçar a orelha. Sorriu. Estava tranqüilo para o exame de toque anal anual obrigatório. Tinha a esperança de atingir sua aposentadoria compulsória antes de atingir os 73 anos.

E as pererecas seriam os animais mais cultuados da Guaicurúndia, chegando a ganhar uma verbosa elegia composta por Noel Marros Beda, maior poeta vivo, ou morto, daquela ampla região que abarca o Pantanal e o Chaco, dominada pelos índios porqueiros siouxaguaios.

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