quarta-feira, 27 de outubro de 2010

_Recluso

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Em priscas eras, em tempos que não voltam mais, havia um homem, que convencido da inutilidade das coisas e da própria existência, resolveu morar num lugar afastado, longe de tudo e de todos. Tornou-se um recluso extremado.

Quando, porém, encontrou-se face a face com a solidão profunda do lugar para onde tinha ido, sentiu remorsos e resolveu reformular os seus pensamentos sobre a vida, que até aquele momento eram negros como a asa da graúna. E resolveu reformular seus pensamentos, sua filosofia de vida.

Olhou para o céu e viu como era bacana o azul. Olhou para as plantas e viu como era legal ser verde e dar frutos, ser fruta e ser semente, ser botão e ser rosa. E, enquanto andava ao encontro do vento, notou como era delicioso o ar que respirava. Quando cruzou um regato de cristalinas águas, comoveu-se com o seu murmúrio, com a marcha ondulante e sinuosa, delicada e maviosa e, sobretudo com o mistério de seu curso.

Mais ainda, quedou­se admirado com as próprias casinhas que, aqui, ali e acolá e algures, pontilhavam o extenso campo que naquele momento atravessava, com a presença construtiva e fumacenta dos homens.

, o nosso herói encontrou-se com alguns homens e mulheres que marchavam para o trabalho. E perscrutou as suas fisionomias, seus semblantes carregados, o ar fustigado e aqueles olhares curiosos que pousavam sobre ele, barbudo e maltrapilho ermitão que voltava ao convívio humano.

Estava novamente em meio à guerra pela sobrevivência. E conversou com uma bela dama que passava. "Eles estão tentando me matar", disse apavorado. "Ninguém está tentando te matar", ela retorquiu. "Então, porque estão atirando em mim?", perguntou ele acusador. Ensandecida, ela ainda tentou argumentar: "Eles estão atirando em todo mundo! Estão tentando matar todo mundo!" Ele olhou passivo e voltou a questionar, sem esperar resposta: "E que diferença isso faz?"

E quando sentiu a frieza daqueles olhares, principalmente dela, resolveu de uma vez por todas a sua vida. E num dia afastado, nessas mesmas priscas eras, nesses mesmos longínquos tempos, um homem, convencido da inutilidade das coisas e da própria existência, resolveu morar num lugar afastado, longe de tudo e de todos... Novamente recluso

Pra sempre.

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