sábado, 24 de julho de 2010

Olhos para sempre abertos

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Tal como eu, Milena (que ganhou este nome do pai, um kafkiano fanático, em homenagem a Milena Jesenská, a namorada do escritor tcheco) não acreditava em nada. Nada que não fosse racional e cientificamente comprovado. Só no que via —a diferença é que eu era mais cético do que ela, pois muitas vezes não acreditava nem no que via, mas essa é outra história. Desde pequenos, nos tempos do curso de catecismo, a única coisa que a fazia freqüentar aquelas aulas, que a gente considerava um bocado chatas, era sua vontade de negar tudo o que via e ouvia.


Vó Donata, sempre a sua Vó Donata Mariani, advertia que todo esse agnosticismo, essa descrença, além do ceticismo, só poderiam levá-la a um fim trágico —não que Donata fosse das mais carolas, mas tinha lá suas fortes crenças religiosas. Milena sempre respeitou muito a opinião da velha Donata, embora nunca mudasse sua postura radical. Com o tempo, Milena se tornou uma anti-teóloga. Estava sempre estudando todo e qualquer tipo de religião, crença, seita em sua forma mais profunda, sempre como o mesmo objetivo: negá-las.


Milena, a pedagoga, não acreditava em coisa nenhuma, era uma incréia, quase uma herege. Catolicamente, casou-se na igreja graças ao catecismo forçado da Vó Donata, e também pela forte crença do seu marido. Durante a cerimônia tudo que ouvia a aborrecia profundamente. Quanta bobagem!, pensava com seus zíperes. Sua indignação só aumentava, principalmente quando se lembrava da recusa do padre em tocar Carmina Burana, poesia e música (belíssima, diga-se de passagem, composta pelo alemão Karl Orff) considerada maldita pela Igreja Católica, durante a cerimônia. O padre não deixava de ter alguma razão, pois muitos dos poemas dos Cármina Burana são um bocado obscenos.


Após muitos anos de estudo, Milena, a pedagoga atéia, era até convidada para, conferências, palestras e encontros das mais variadas seitas e religiões, mas nunca se convencia, e muitas vezes acabava convencendo os outros de sua controversa opinião. Javé, Lúcifer, Cristo e Anti-Cristo, santos, anjos e demônios, para ela, a racional e incrédula Milena, nada disso fazia sentido. Não era coisa com a qual devesse perder tempo. Um dos seus livros de cabeceira era “O Umbigo de Adão”, do norte-americano Martin Gardner, que se diz um desmistificador (e desmitificador) profissional.


Aos 33 anos, a idade do filho do Todo Poderoso, a partir do feriado do Dia dos Mortos, sonhos com sua defunta Vó Donata começaram a atormentar seu sono, sua vida. Sempre a mesma mensagem era repetida “Minha netinha (mesmo com Milena já adulta, Vó donata sempre a chamava de netinha) querida, isso não vai acabar bem". Mas Milena, mãe de filhos católicos, nunca se rendera à sua crença. A total falta de crença —descrença— era mais forte. E o sonho tornou-se recorrente; Milena, que nem na psicologia acreditava, começou a se sentir incomodada. “Que diabo de sonho é esse, que me incomoda quase todas as noites?”


A experiência que confirmaria os presságios da sua Vó Donata começou em uma noite de sono tranqüilo —era o 313º dia do segundo ano de sonhos repetidos incessantemente, quase que diariamente,. No meio de um sonho muito mais que real, Milena acordou. Por onde andava, apareciam elementos de tudo que estudara por toda vida: objetos de adoração satânica, cruzes, crucifixos, terreiros de macumba, imagens, pinturas, ícones. Além dos objetos eclesiásticos, muitas lágrimas e muito sangue por todos os lados. A consciência da realidade daquele mundo criado dentro de sua própria cabeça era o que mais amedrontava a racional e lógica Milena. Afinal, se não acreditava em nada do que via, aquilo não poderia causar efeito em sua mente acurada.


Quanto mais caminhava por ali, mais desconcertante e completo se tornava aquele mundo. Como em um castelo psíquico desmoronando e expondo ao consciente tudo o que fora reprimido em um inconsciente recalcado por toda vida. No fundo, sempre a voz da sua avó, a Vó Donata. E a sua inconformidade: como ela, a incrédula Milena, poderia ser a criadora de um mundo tão pouco improvável?


Em sua caminhada pelas trevas de tudo que sempre temeu, ela, a assustada Milena, viu-se cercada. Cristo, Lúcifer, espíritos do bem, e do mal, parentes e amigos mortos, inimigos e desafetos também, santos, anjos e demônios se aproximavam. Vozes, gritos e gemidos tornavam-se ensurdecedores, e o chão, de onde saiam milhares de mãos desesperadas, tentava segurá-lo e afundá-lo numa lama pútrida, fétida e asquerosa. Quase sem forças, a desesperada Milena ajoelhou-se e, num momento de rendição, viu sua avó Donata chorando no portal de entrada de uma enorme catedral gótica, cinzenta e sombria, repetindo em sussurros que só por ela poderiam ser ouvidos —"Crê, Milena! Pelo amor de Deus, crê!"


Ela, a quase morta Milena, fechou seus olhos no momento em que todos os que vinham em sua direção começaram a tocá-la. Consciente de que ao se render àquele medo estaria negando tudo que era, e portanto, sua própria existência. Ela, a finada Milena, abriu os olhos fugindo do terrível pesadelo. Como sua Vó Donata sempre dissera, "isso não acabou bem". Os olhos fixamente abertos mostravam que estes olhos se fecharam pra sempre. Milena fora enterrada naquele mesmo dia, com direito a missa, longo séquito, discurso à beira da cova, orações compungidas, cruz sobre a sua lápide e seus olhos, para sempre, abertos.

Texto: Luca Maribondo
Ilustração: Helen Vaughn

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