sábado, 31 de julho de 2010

Morando no futuro

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Por definição, casa é um imóvel; isto é, não pode se mover. Mas no mundo inteiro fala-se do esforço de arquitetos das mais variadas nacionalidades, procurando revolucionar o conceito de casa. A casa, uma entidade estática, se transformará no futuro em algo dinâmico, altamente plástico e funcional. Este blog consultou arquitetos de Campo Grande, Figueirão, Ladário; escreveu a diversas organizações especializadas.


Pode o blog, portanto, oferecer aos seus dois ou três leitores —num esforço de raciocínio absolutamente inédito na imprensa brasileira— alguns flashes em primeira mão do que será a moradia dos bisnetos de todos nós no final milênio recém iniciado.


Pense bem: a casa é um sólido ou é um fluido? A rigidez, a inflexibilidade da casa, terão desaparecido em poucos anos. Em seu lugar —de acordo com a Casa Cláudia— despontará uma entidade formidavelmente moldável, inteiramente submissa ao comando eletrônico de botões e alavancas. A palavra chave desta transformação é: moving (brasileiro adora uma palavra inglesa. Tudo na casa poderá mudar, num segundo, desde que o deseje seu dono.


Tomemos a fachada. A fachada da casa do futuro será uma das partes mais metamorfoseáveis. Obedecerá até a caprichos absurdos do proprietário: será, se ele quiser, vitoriana às duas da tarde, barroca às oito da noite, visigoda ao soar das doze horas, contemporânea e sofisticadíssima de madrugada (com casais dançando nos jardins suspensos em volta da piscina), rústica e rupestre ao nascer do Sol.


Boutros e Hubber, especializados na questão A Arquitetura e a Dona de Casa, apontam —entre muitas outras— duas vantagens grandes da mutabilidade da fachada: Primeiro, a defesa contra visitas inoportunas. Ameaçada de receber algum chato (ou chata), a dona de casa mudará célere a fachada habitual de sua residência para uma completamente desconhecida. A visita, estranhando o aspecto pouco familiar, irá procurar a casa em outro quarteirão, desistindo eventualmente, ou adiando seu sinistro projeto. Nota: este recurso popularizará uma prática hoje completamente inexistente: a de se disfarçar uma casa.


Residências relativamente modestas poderão, quando for época de casar uma filha ou de impressionar um cliente, assumir aparência mais opulenta. Outras, muito ricas, poderão apresentar-se mais humildes, quando se lançar o imposto predial. Pessoas com gosto pela coisa pública darão às suas casas fachadas de ministérios ou de embaixada. Ministérios, quando enfrentarem manifestações públicas visando a aumento do salário-mínimo, assumirão a aparência de simples barracas de feira etc.


Castigo de Marido Retardatário. Embora parecendo uma vantagem banal, Boutros e seus associados apontam este item como dos mais sedutores para. A Dona de Casa. Em essência constitui-se do seguinte: maridos retardatários são, de modo geral —por razões várias— seres fatigados. O cansaço não lhes permite dar logo conta do que acontece à sua volta. Entram na rua onde moram, encostam o carro, descem para abrir a porta da garagem, cadê garagem? Olham para o portão da frente, encaminham-se para tocar a campainha. Cadê o portão? Cadê a campainha?


Concluem que se encontram diante da casa errada: começam a dar voltas pelo quarteirão, pelo bairro, pela cidade. Chega a aurora. Acontece que de manhã, na cidade do futuro, as casas em geral mudam de fachada; já é um hábito. O marido retardatário se sente perdido, como se fora turista ou estrangeiro. Não sabe onde está, começa a não saber mais quem é. Corre para o telefone. Tecla. Mas o número do telefone é mutável como a fachada. Alucinado, desnorteado, em pânico, começa a bater nas portas das casas, perguntando se é ali que ele mora.


Finalmente, quando já o ameaça um colapso nervoso, um ataque de esquizofrenia, surgem alguns elementos da PMP (Patrulha do Marido Perdido), que o recolhem e encaminham à sua residência. Conclusão: a plasticidade das casas do futuro, segundo as mais recentes estatísticas, reduziu de 93 % a incidência de maridos que chegam tarde em casa.


O aposento é móvel. O princípio da mudança acabará por estender-se não somente às fachadas —prevê o engenheiro Marrobone, correspondente da Casa & Jardim— mas também aos diversos quartos e aposentos de que se compõe a casa. Problemas básicos de comodidade serão, claro, solucionados.


Veja-se um problema concreto: crianças, no seu quarto do segundo andar, andam exagerando um pouco a sua natural exuberância. Entretêm-se em demolir o aposento, enquanto, num canto, dois dos irmãos mais velhos massacram o caçulinha. Tais afazeres acabarão por força perturbando a dona de casa, que se encontra justamente assistindo à novela das seis ou a Márcia. Contudo, intervém a ação eletrônica. Mediante o toque em um botão, o quarto desce, uma das paredes se afasta, as crianças são subitamente expostas ao olhar terno mas severo da mãe —que poderá manter, entrementes, o outro olhar à tv led.


Uma vez sossegadas, o mesmo processo recolocará crianças e quarto ao ponto de partida. Outras vantagens: o quarto de crianças móvel, aperfeiçoado, poderá também servir de babá. Suponha-se que à saída do colégio o ônibus encarregado de trazer os petizes esteja avariado.


Os meninos, ao invés de esperarem num bar, consumindo caipirósca ou caracu, entrarão direto no quarto que a mamãe mandou buscá-las. E enquanto o quarto percorre num trote dolente o trajeto de volta, os meninos já podem ir mudando de roupa, guardando suas pastas, arrumando-se, de modo a se apresentarem razoavelmente reconhecíveis diante da mamãe.


Assim se corrigirá um dos grandes males sociais de nosso tempo. Pois hoje em dia, como se sabe, cada menino volta da escola mais sujo, mais despenteado, mais amarrotado, mais amarfanhado que o outro, a ponto de necessitar-se muitas vezes ter-se de tirar as impressões digitais para saber se a criança é mesmo daquela casa.


Os outros aposentos móveis. Segundo Gomez, o princípio da mutabilidade ou da mudança será naturalmente aplicável aos demais aposentos. E não apenas a aposentos, mas também a paredes, elementos decorativos, armários, lustres etc. A sala de jantar, mediante pequeno esforço, deixará sua posição habitual, deslocando-se para diante, para trás, para os lados ou mesmo para cima, desde que isto se torne necessário. Poderá expelir visitas retardatárias, depositando-as na calçada; buscar compras na conveniência, trocar de lugar com algum outro aposento etc.


O chão será dócil e obediente, em toda a extensão da casa; levará o morador fatigado ao seu quarto no primeiro andar, transportará enfermos, e assim por diante. O banheiro irá até a quem estiver precisando dele; o almoço será servido, não pela copeira, mas pela copa. Ladrões cairão prisioneiros de paredes móveis ou de armários embutidos, habilmente manejados, que os seguirão silenciosamente, passo a passo, até o momento de prendê-los.


O princípio da mudança acabará sendo aplicado à casa inteira, não apenas a partes dela: a casa toda poderá deslocar-se. Não a grandes distâncias, é claro, mas o suficiente para abolir, por exemplo, a noção de casa de campo, até porque qualquer casa poderá ser de campo, desde que a transfiram pra lá. No verão, cidades inteiras irão se mudar para a roça, voltando, a maioria delas depois do carnaval. O mesmo acontecerá nos fins-de-semana, pelos praticantes de fim-de-semana, que se deslocarão para seus destinos sem sair de casa.


Entrementes, os ladrões, naturalmente, serão prejudicados, não tendo mais casas vazias no weekend pra assaltar. Mas o progresso é assim mesmo, há sempre uma pequena minoria que é sacrificada.


E a paisagem eletrônica? O ponto mais alto da perfeição acontecerá depois que se descobrir que, embora admirável, o processo de deslocamento das casas pode ser substituído, com vantagem, por outro.


O método novo baseia-se, segundo Dilma Vana, na lei da física psicológica que diz que o observado é 70% função do Observador. Isto, trocado em miúdos, significa que tanto o jardim que cerca a casa, quanto à paisagem, que é uma espécie de jardim mais amplo, poderão modificar-se de acordo com a vontade de quem os contempla. Assim, o que se avista da casa perderá, aos poucos, qualquer ligação com a geografia local, com o paralelo ou meridiano que passa pela casa. Auroras boreais poderão ser presenciadas do Pantanal; tempestades tropicais do alto dos Andes, nevascas de Fortaleza etc.


Até o próprio dia e a noite obedecerão à vontade dos homens; uma das cortesias habituais do bom anfitrião será a de servir, juntamente com o prato predileto do convidado, o tempo (cronológico) e o tempo (climático) de sua preferência. Durante a mesma refeição um convidado avistará da janela: tarde, rio e chalanas; outro, ao seu lado, verá a noite com suas estrelas e a luz cheia.


A noção um tanto banalizadora de almoço ou jantar será assim abolida; as refeições de cerimônia serão animadas por conversas muito mais instigantes: haverá muito mais assunto. Todos hão de querer saber o que o vizinho ao lado vê naquele momento, onde se encontra, o que sente. O que disser será muito mais respeitado por saber-se que seu depoimento corresponde a uma realidade só dele. E haverá tantas realidades quantos forem os convidados.


Tão perfeita será esta manipulação do tempo, do espaço, da paisagem, que no futuro os grandes viajantes, ao contrário de Marco Pólo, Galvão Bueno, Lula da Silva e outros viandantes, serão aqueles que mais tempo passarem em suas casas. E não parecerá em nada absurda a conversação em que um dos interlocutores pergunte: —Tem viajado muito? E o outro responda: —Não; não tenho tido tempo. Não paro mais em casa.


Revendo estes vaticínios, notamos, não sem certo alarma, o rumo ameaçador para o qual parecem convergir. Na busca de oferecer cada vez maior comodidade ao morador, a casa do futuro vai-se identificando mais e mais com ele. Habitante e habitado passam a constituir uma unidade onde, aos poucos, já não se sabe quem é quem; ora a casa parece inteiramente humana na sua sensibilidade de transformar-se, ora o homem parece cada vez mais a sua própria moradia, como um caracol com a sua casa à parte.


Residindo em si mesmo, não tendo contato senão com as coisas que há dentro dele, nosso morador acabará achando que só ele existe, que só ele tem razão, que só dele dependem as coisas, o mundo todo. E o pior é que esse tipo de homem vai-se tornando cada vez mais freqüente, antes mesmo da chegada do futuro.


E é por isso que aproveitamos este despretensioso estudo para fazer um apelo aos grandes arquitetos do presente e seus sucessores: atentem nos perigos da eletrônica, resistam à tentação dos triunfos exclusivamente técnicos, não transformem no tipo de gente acima referido o locatário do porvir. Pois os homens que acham que só eles existem, que só eles têm razão, enquadram-se numa classificação perfeitamente caracterizada e recebem, sempre que possível (quando diagnosticados) , uma residência especial. Ousamos esperar, sinceramente - a despeito do caminho que o mundo parece escolher —que não venha tornar-se esse tipo de residência especial a casa da maioria dos homens do futuro.

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