sexta-feira, 2 de julho de 2010

[Os donos do saber]

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Há alguns anos, num final de semana, casa de pessoa que conheço, localizada em pleno centro da cidade, desabou. Isso mesmo: caiu, esbarrocou-se, esbarrondou-se, redambalou, tombou. Por pouco não despencou na cabeça dele e da família. A causa foi um enorme buraco cavucado em obra no terreno vizinho. Não sou engenheiro nem técnico em buracos, porém, assim que me deparei com a cratera, previ que era bem possível que a casa do meu amigo ruísse. Engenheiros e técnicos, incluindo autoridades do setor da construção civil, da administração municipal , entre outras, garantiram que a obra era perfeitamente segura. E, no entanto, a casa caiu.

Depois do evento, me veio à cabeça que todos os dias, milhares de pessoas se submetem ao todo poderoso deus criado pela humanidade: sua santidade o cientista, o especialista, o sábio. Seu habitat natural são os modernos laboratórios, hospitais e universidades. Em todos os lugares, encontramos o especialista, guardião do conhecimento científico, o qual, pretensamente, tem resposta para todos os males que afligem a humanidade – e pelo menos na sua área de conhecimento. São os pequenos profetas, representantes do saber canônico legitimado pela sociedade, autoridades instituídas que têm o poder da palavra.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, grande crítico dos meios de comunicação que morreu em 2002, escreveu que "a especificidade do discurso de autoridade (palestra, curso, sermão etc.) reside no fato de que não basta que ele seja compreendido (em alguns casos, ele pode inclusive não ser compreendido sem perder seu poder), é preciso que ele seja reconhecido enquanto tal para que possa exercer seu efeito próprio". Hermetismo é a palavra chave.

De maneira geral, os aluninhos, por exemplo, ficam arrebatados com a erudição do mestre. Em determinadas circunstâncias, quanto mais incompreensível for o discurso do professor mais ele parecerá inteligente. Em geral, passa despercebido o fato de que a instituição universitária legitima o discurso professoral: o docente não precisa saber, mas sim aparentar que sabe —quem estuda ou já estudou numa universidade local sabe do que estou falando. O mundo à nossa volta está cheio de gente que apenas finge que sabe, estilo professor-filósofo, sabe sempre, e o distinto público ficava boquiaberto com tanta sabedoria e erudição; na verdade, embromação. Este tipo de autoridade se impõe devido à nossa cumplicidade.

Quando procuramos um engenheiro, mecânico, advogado, médico, curandeiro ou algo que o valha, aceitamos de bom grado a sua sapiência: suas palavras expressam a verdade científica. Como nós, míseros ignorantes, podemos questioná-lo? Terá o discípulo a ousadia de questionar o saber do mestre? Ainda que este ou aquele professor seja inquirido neste ou naquele ponto, a sua autoridade estará resguarda pela posição que ocupa na instituição. Ou seja, ainda citando Bourdieu: "A linguagem de autoridade governa sob a condição de contar com a colaboração daqueles a quem governa, ou seja, graças à assistência dos mecanismos sociais capazes de produzir tal cumplicidade, fundada por sua vez no desconhecimento que constitui o princípio de toda e qualquer autoridade".

A imposição do saber, da palavra autorizada, inclina-se à arrogância, manifesta ou camuflada (na forma da humildade demagógica). Isto ocorre na medida em que o portador do conhecimento científico não reconhece outro saber. Há quem considere que a posse da sabedoria livresca e do conhecimento titulado e legitimado pela instituição concede status superior. Não fosse o mal e o sofrimento que causa —para si e para os outros -, a arrogância bem que poderia ser desconsiderada ou simplesmente debitada às compreensíveis fraquezas humanas.

Imagine-se no lugar da criança submetida à arrogância professoral, do estudante sacrificado no templo dos pequenos profetas, ávidos e autoritários; imagine-se nos corredores de um hospital, submetido à autoridade dos médicos e burocratas e sem outra opção a não ser esperar e esperar... E quando, mesmo com toda a cumplicidade à autoridade instituída, nos vemos diante de uma situação desesperadora, para a qual a ciência não tem resposta?

"O Óleo de Lorenzo" (Lorenzo's Oil), filme de George Miller (autor da série Mad Max) de 1992, ilustra bem essa situação. É a história real de uma criança que tem uma doença rara e, pelos prognósticos dos doutos especialistas, não viverá muito. Logo nas primeiras cenas um fato se sobressai: o sofrimento ao qual o menino é submetido e as dificuldades da ciência em diagnosticar seu mal. A fala fria e científica (que beira a crueldade) do médico ao informar o diagnóstico contrasta com o desespero emocionado dos pais. A mãe pergunta se não há uma remota possibilidade de cura, se ele tem certeza. O doutor responde, seca e desafiadoramente: "Absoluta!". Só resta a resignação.

Em "Patch Adams – O Amor É Contagioso", filme realizado por Tom Shadyac, fica claro como se chega à objetividade científica traduzida em gestos e falas que mais se assemelham a autômatos. O filme relata a história de um homem com tendência suicida que, no hospício, descobre um sentido para a vida: ajudar o próximo. Nesta busca do outro, ele cursa medicina. Na faculdade, entra em choque com a burocracia e, principalmente, com a filosofia de ensino defendida pelo professor-reitor. O paciente se submete à autoridade do médico, o que atesta o seu poder. Como o poder causa dano, a solução apregoada pelo reitor para evitar ou minorar as conseqüências é a recusa dos sentimentos e a valorização absoluta da objetividade científica. Adams, contra tudo e contra todos, usa o humor para vencer as barreiras.

Nessa perspectiva, a tarefa dos professores é desumanizar os futuros médicos, isto é, recusar-lhes o status de humanos (com suas paixões, sonhos, fraquezas e dilemas), e transformá-los em médicos. A relação deixa de ser uma relação entre humanos e passa a ser uma relação sujeito-objeto, do médico com a doença. Os doentes são desumanizados, anulados em sua identidade e transformados num número da ficha hospitalar, num caso a ser estudado, diagnosticado e tratado.

Eis como se forma um cientista desprovido de subjetividade —como se isto fosse possível! Seria a sisudez um aspecto inerente ao ato de fazer ciência? Observa-se nesses filmes como alguns indivíduos que representam o saber científico (médico, professor, pesquisador etc.) distanciam-se dos demais seres humanos e adotam um ar de gravidade - confrontado, em "Patch Adams", pelo bom humor e o jeito peculiar de encarar a profissão. É interessante como este estilo influencia os estudantes: o aprender transforma-se em sinônimo de desprazer, competição e inveja (como se a cretinice e a chatice fosse condições para o trabalho intelectual). A prática de "Patch Adams" coloca em xeque o método de ensinar-aprender tradicional. Não por acaso, o reitor defende-se dos questionamentos com um argumento tipicamente científico e, portanto, irretorquível na sua visão: "Nosso método é o resultado de séculos de experiência".

O filme "O Óleo de Lorenzo" demonstra que, em sua arrogância, os guardiões do saber dogmático não admitem concorrência: reflete a contradição entre o saber considerado científico e o saber não reconhecido no campus. Os pais de Lorenzo, na luta para salvar o filho, tornam-se autodidatas, rivalizando-se com os todo-poderosos oniscientes. As autoridades científicas relutam em aceitar os avanços obtidos nas pesquisas realizadas sem o seu controle.

Mas, a resistência não é apenas dos médicos: os demais pais, cujos filhos sofrem da mesma doença de Lorenzo, não aceitam que alguém fora da academia possa atingir o saber científico. Ou seja, negam legitimidade ao saber não-diplomado. "Querem ensinar os médicos", acusa uma mãe. Em outras palavras, sem canudo, nada a ver. Na sua opinião, o desafio ao saber estabelecido é um ato arrogante. E ela tem certa razão. Com efeito, a palavra arrogante vem do latim arrogare, que significa apropriar-se de. E de fato, o que o pai de Lorenzo faz é, por meios próprios, apropriar-se do conhecimento científico. Adams também representa um desafio ao saber instituído, na medida em que questiona seus pressupostos e projeta uma experiência autogestionária, em que todos aprendem e ensinam mutuamente (a idéia de um hospital no qual os doentes e médicos aprendem uns com os outros e somam esforços no sentido de tornar a vida melhor).

"O Óleo de Lorenzo" e "Patch Adams", baseados em histórias reais, questionam a arrogância titulada e o intelectualismo desencantado do mundo: o saber cientificista, abstrato e sisudo, profundamente desvinculado do humano; um saber que não mergulha no mar da humanidade, um saber desumanizado. O amor pelo filho e pelo próximo alimenta a paixão pelo conhecimento. Com efeito, para o homem enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazê-lo com paixão. O trabalho realizado com paixão inspira e realiza o homem; o contrário exprime obrigação, opressão. O exemplo do pai de Lorenzo comprova que o diletantismo é positivo.

O saber confrontado pelas experiências relatadas nos filmes vincula-se, via de regra, à vaidade - que, em defesa dos intelectuais, não é uma propriedade exclusiva do campus. Se todos somos vaidosos, em menor ou maior grau, o problema começa quando a vaidade se traduz em atos autoritários ou se erige em obstáculo às relações humanas (talvez, por isso, há quem prefira os animais).

Talvez nos reste apenas o ceticismo, não esse ceticismo que nos faz apenas acreditar nos especialistas —nos sábios, nos doutores, nos mestres—, mas o ceticismo mais profundo pregado por Bertrand Russel, cuja doutrina é na verdade paradoxal na mesmo medida em que é subversiva: "é indesejável acreditar numa proposição quando não há a menor base para supô-la verdadeira". Segundo o filósofo inglês, "nunca sabemos o suficiente para ter certeza de que agir desta forma é mais sábio do que doutra". Donde se conclui que o preço da sabedoria é detestar (ou descrer de) tudo.

Texto Luca Maribondo
Ilustração Paul Stocklin

2 comentários:

Julio Cotting disse...

Parabéns pelo texto que serve como chave para muitas mentes fechadas moldadas pelo imposição sistemática da classe dominante.

Maria Eugênia Amaral disse...

Luca querido! De uma coisa da minha vida acadêmica eu não tenho saudade nenhuma, absolutamente nenhuma: conviver com a arrogância (tão comum em cabeças ungidas com os óleos doutorais). Xô! Vá de retro estupidez!
Obrigada pelo texto.
Eugênia Amaral
P.S. A propósito, o meu blog está com novo endereço (o velho foi detonado): www.midiamax.com.br/eugenia/
Beijos