sábado, 10 de julho de 2010

[ Medo da claridade]

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Quando se analisa o grave problema do tráfico e consumo de drogas no país, a conclusão a que se chega é de que um dos principais culpados é a classe política. Até porque são os políticos os responsáveis pela elaboração e aprovação da legislação que regula o combate às drogas pelo aparelho de segurança pública. No mundo inteiro, hoje, há gente que é totalmente a favor da legalização das drogas. Isso porque a política de combate às drogas utilizada hoje é ineficiente e burra. É bem possível que o melhor modo de controlar, diminuir e ter acesso às drogas é a legalização. Após isso, o governo deve prestar serviços de assistência social e de saúde para as pessoas que buscam as drogas.

Essa opinião tem muitos defensores no mundo inteiro. Não é afetação ou vanguardismo de especialistas exóticos. De acordo com essa opinião, que é de muitos especialistas do mundo inteiro, a política repressiva de combate adotada pelos os EUA, que o Brasil segue sem questionar, é a irmã siamesa do narcotráfico. Como isso é um mercado, cada vez que a polícia apreende uma determinada quantidade de drogas, provoca o aume00nto do preço do produto e enriquece os narcotraficantes, com as conseqüências que todos conhecem.

Na opinião de muitos especialistas brasileiros, o Brasil deveria seguir a política européia de combate às drogas ilícitas. A política européia, da Holanda por exemplo, procura descriminalizar e legalizar a droga para ter acesso aos dependentes. Assim, é possível dar apoio para o dependente deixar o vício. A liberação das drogas chamadas “pesadas”, como heroína, cocaína, lsd e outras, não iria aumentar o número de viciados. A legalização na Holanda não aumentou um grama o consumo e diminuiu muito a violência e as doenças ligadas ao uso de drogas, além de evitar um dos piores problemas desse sistema, que é a corrupção do aparelho policial.

Alívio ou veneno? Alimento dos deuses ou maldição do diabo? Hábito natural ou desvio social? Prazer ou sofrimento? Não existem respostas fáceis e, muito menos, certas quando se fala de drogas. Quase tudo o que publica a respeito reflete essa ambigüidade. Não há consenso. Em tudo o que sai nos veículos de comunicação e livros, verifica-se que quase não há indecisos sobre o tema. Ou seja, não importa de que lado as pessoas estejam, o fato é que todos têm opinião formada —e arraigada— sobre o uso de drogas. É surpreendente encontrar tal convicção em assunto tão complexo e polêmico, com aspectos médicos, econômicos, sociais, históricos, éticos e morais tão sinuosos.

Mas uma coisa é certa sobre as drogas: é preciso haver informação. Informação de qualidade, desvinculada da moral, do poder econômico e das forças políticas. Mas que ninguém se iluda: o primeiro efeito da legalização das drogas seria o aumento imediato do consumo, por várias razões. Primeiro, o preço cairia muito: o custo de produção e distribuição da cocaína equivale a 5% do seu valor atual. Uma porção de maconha custaria o mesmo que um saquinho de chá. Não bastasse esse incentivo, o estigma social dos usuários seria menor: ninguém precisaria disfarçar ou se esconder para fumar um baseado. Ou seja, o acesso às drogas, por mais rigorosa que fosse a legislação regulando seu comércio, seria muito mais fácil e seguro do que é hoje.

Nobel de Economia, Milton Friedman pensa que todas as drogas deveriam ser vendidas como acontece com os remédios: nas farmácias. Em seu mundo ideal, ele até vislumbra a heroína light e a cocaína de baixos teores. A idéia parece extravagante e acarreta várias desvantagens, mas teria pelo menos um benefício inconteste: obrigaria o usuário a procurar um médico, o que permitiria ao governo saber quantas pessoas consomem o quê. E drogas produzidas legalmente teriam controle de qualidade. Hoje, a cocaína que chega ao usuário tem até 90% de impurezas.

A legalização permitiria taxar a venda de drogas. O dinheiro financiaria a educação, a prevenção e o tratamento de usuários. Diante dos preços atuais, mesmo um hiper-imposto de 300% quebraria o tráfico e o comércio ilegal. Some-se a isso um controle sobre as armas e a criminalidade despencaria. Os problemas socioeconômicos iriam se manifestar em algum lugar, mas a quantidade dos crimes com morte cairia, porque o número de armas seria reduzido e a fonte de financiamento para comprá-las estaria seca. Áreas sem ordem e sem lei poderiam ser finalmente reintegradas à cidade.

Outro benefício com certeza seria a redução drástica da corrupção policial e em setores da Justiça. Os narcotraficantes incrementaram a figura do “crime organizado”, que passou a ser realmente “organizado” a partir do momento em que policiais de todas as patentes e servidores públicos de todas as áreas passaram a receber parte dos seus salários (a parte mais gorda, diga-se) dos traficantes internacionais de drogas.

Da maneira como foi formulada, a guerra contra as drogas está perdida desde o dia em que alguém escolheu como meta a erradicação completa e total. Tal façanha era e sempre foi impossível, admitem os especialistas. Mas o fato é que só agora isso saltou aos olhos da intelligentsia. Difícil encontrar um administrador público que acredite de verdade que é possível acabar com as drogas. Mesmo os funcionários da DEA, agência norte-americana de combate ao tráfico, admitem isso.

Agentes públicos em muitos países buscam uma diretriz que substitua a antiga utopia. E estão encontrando alternativas promissoras. A mais difundida é a redução de danos, que evita o erro anterior. Já que erradicar as drogas é impossível, tenta-se reduzir os estragos que elas causam aos usuários e à sociedade. Ou seja, as mortes, as doenças e o crime. Faz parte desse espírito, por exemplo, oferecer seringas a usuários de drogas injetáveis para evitar que eles compartilhem agulhas e contraiam doenças. Ou, como ocorre mundo afora, substituir uma droga ilegal por outra que cause menos prejuízo à saúde.

Uma revolucionária experiência ocorre na Suíça. Lá, quem quiser usar heroína pode obtê-la de graça do governo. Pode até parecer piada, mas lá o Estado construiu clínicas para os usuários, com direito a parede branquinha, maca com lençol, seringa e até um enfermeiro para aplicar a injeção —postos de saúde para dependentes de drogas. Resultado: o tráfico e as mortes por overdose acabaram, todos os usuários estão sob cuidados médicos e muitos estão deixando o vício. O Brasil também anda experimentando. Em São Paulo, dependentes de crack foram estimulados a consumir maconha. Em oito meses, quase 70% deles largaram as duas drogas. Atrás de opções, os agentes públicos estão redescobrindo as campanhas de educação e prevenção. Segundo o instituto de pesquisas norte-americano Rand Corporation, nos anos 1990 esses programas foram doze vezes mais efetivos que o combate ao tráfico e o encarceramento.

Mas nem os críticos da atual política querem paz para os traficantes. Nesse campo, as sugestões procuram otimizar o combate. O juiz aposentado e ex-secretário nacional antidrogas, Walter Maierovitch, tem sua fórmula: controle eletrônico das transações financeiras, regulamentação dos paraísos fiscais e vigilância sobre os produtos químicos necessários para a produção das drogas. Estes são vendidos sem qualquer controle.

Entretanto, qualquer coisa que é proposta com relação ao conceito de legalização ou descriminalização das drogas sempre esbarra no preconceito. A primeira coisa é o autor ser tachado de apologista —eu mesmo já passei por isso: escrevi um artigo sobre o assunto há alguns anos e tive problemas com as autoridades e com o dono do jornal. Sempre associada ao “vício”, a palavra "droga" e seus diversos axiomas e paradigmas, sempre suscitou debates inflamados, críticos hipócritas, defensores medrosos ou análises pouco profundas. Não necessariamente drogas se tornam vícios.

As “drogas” estão por toda parte e nas casas mais “insuspeitas”. Um exemplo disso é a grande quantidade de médicos drogados. Quando é noticiado um crime hediondo, a primeira coisa que as pessoas fazem é afirmar que o criminoso é, está ou estava drogado. Uma afirmação que, mais do que culpar a droga pelo ato, serve de atenuante ao criminoso. O tiro aí sai pela culatra. Existem pessoas más e pessoas boas que usam drogas. A droga não faz com que pessoas boas se tornem más ou vice-versa.

Diante de tudo isso, uma coisa fica muito clara: está mais do que na hora da América Latina —e o Brasil a reboque— romper com as políticas de drogas impostas pelos Estados Unidos. Líderes da região deveriam chamar a guerra contra as drogas pelo seu verdadeiro nome —fracasso, farsa, hipocrisia— e dizer a Washington que a América Latina não mais contribuirá com um esforço vergonhoso e desorientado que corrói as perspectivas econômicas e a coesão social da região. Quando os EUA mostrarem o inevitável punho cerrado e brandir suas ameaças de sanções, pode-se simplesmente lembrar que, quando se lida com amigos, a honestidade, não a hipocrisia, é em geral a melhor política.

Jamais existiu, ao longo da história da humanidade, uma sociedade livre de drogas – e, pelo visto, nunca haverá. As drogas não vão desaparecer. Portanto, o melhor é reduzir os danos que causam. Nesse aspecto, o melhor caminho para a América Latina, que possui alguns dos grandes produtores mundiais, seria a legalização. Esta opção, entretanto, ainda é uma alternativa muito radical; é uma solução de bom senso, mas difícil de ser implementada. Por enquanto os países da América Latina poderiam reduzir o custo social e da guerra contra as drogas adotando duas estratégias: o conceito de “redução de danos” e a criação de uma “coalizão de antidrogas”, para resistir ao modelo/sistema policial e proibicionista dos EUA, que se provou ineficaz, infrutífero e corruptor.

Mas os norte-americanos iniciaram, nos primórdios do século 20, um ciclo de repressão legislativa que presumiu que qualquer estado de consciência, além daquilo que era (e é) chamado de normal e racional, é errado do ponto de vista ético e subversivo do ponto de vista político. A partir da década de 1960, a repressão recrudesceu, e os políticos criaram leis mais rígidas contra o uso de drogas, aumentaram as penas pela violação dessas leis e intensificaram os esforços para a aplicação dessas leis, chegando a decretar a guerra contra as drogas, que se mantém até hoje como base em muitos países, inclusive o Brasil.

Na verdade, são os políticos os principais responsáveis pela repetição de tragédias como o uso das drogas, consumidas principalmente pelas classes altas e médias. É preciso que todos saibam quem são os verdadeiros responsáveis pelo problema das drogas: os nossos políticos como um todo, que há muito tempo sabem que precisam reformar a segurança pública para salvar a vida de milhares de brasileiros e que há muito tempo fracassam ao não levar essa tarefa a cabo. Que precisam mudar totalmente as políticas brasileiras de combate às drogas, mas nada fazem. O problema é que a grande maioria dos políticos brasileiros —e mesmo de outros países— não tem medo do escuro; tem medo é da claridade.

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