domingo, 21 de março de 2010

_Certo e errado

Se há algo realmente incômodo na leitura de jornais, revistas e sites e na audiência de tvs e rádios é a prática repórteres, redatores, apresentadores e locutores em geral de explicar o significado de algumas palavras, talvez por que as considerem “difíceis”, complexas, intricadas (intrincadas), obscuras ou sei lá o quê. “Doloso” é a rainha das explicações. Não tem vez que alguém cite a palavra que não a explique: “com a intenção de matar”.


Nos dicionários, doloso significa "em que há dolo; que procede com dolo; causado por dolo. Dolo, por sua vez, é "qualquer ato consciente com que alguém induz, mantém ou confirma outrem em erro; má-fé, logro, fraude, astúcia; maquinação." É simples assim. Entretanto, os jornalistas insistem em explicar aos seus ignorantes leitores/telespectadores o significado do termo.

Há algum tempo escrevi um comentário no qual citei uma nota sob o título “Família reconhece corpo de brasileira morta na Holanda”, de autoria da repórter Vanessa Assenoff, da Folha de S.Paulo, em que aparece a locução clave de fá, que nos é traduzida, entre parênteses, para um tom musical. Erro! A própria FSP, descubro no mecanismo de busca da gazeta, garante que “clave é um sinal que identifica as notas de uma partitura, fazendo corresponder uma determinada nota a uma determinada linha na pauta”.


Já o Dicionário Houaiss consigna a seguinte acepção para clave: “sinal colocado no início da pauta musical (pentagrama), repetido em tantas pautas quanto as tenha a peça musical, e que determina os nomes das notas, atribuindo o seu nome à nota que estiver na linha em que ela esteja inscrita (são três as claves: de sol, de fá e de dó, colocadas em diferentes alturas da pauta). Finalizando, o Dicionário Grove de Música clave é o “signo colocado no início do pentagrama, pra fixar a altura de uma (e conseqüentemente das outras) de suas linhas ou espaços”.


Há muito tempo —há anos, calculo eu— tento descobrir quais são os critérios do jornal para “traduzir” para nós, ignorantes leitores, ouvintes, telespectadores, o significado de algumas palavras. Certamente não é a dificuldade que temos em entendê-las. Sempre digo que não existem palavras "difíceis", mas palavras conhecidas e desconhecidas.


Na busca da FSP (é o jornal que leio com mais freqüência) procurei algumas, escolhidas aleatoriamente: terraplenagem (124 ocorrências nos últimos tempos) —entretanto, há ocorrências com a grafia incorreta de terraplanagem; predecessor (179 ocorrências), convescote (84), lábaro (24), griffe (35) —pergunte a dez pessoas, onze não sabem o significado de griffe—; impeachment (912) —e encontrei a grafia errada impeachement quatro vezes; abdução (26), clivagem (66), exotérico (5) —na maioria das menções o redator está confundindo com esotérico, que é exatamente o contrário. Nenhuma delas tinha o significado entre parênteses, apesar de serem palavras de uso pouco comum.


Entretanto, palavras de uso mais corriqueiro ganharam tradução nos textos dos jornais e revistas. Sempre que se fala de política na Alemanha escreve-se e fala-se a palavra “chanceler” à exaustão. E entre os parênteses lá está a indefectível tradução: premiê ou primeiro ministro. Qualquer criança de primeiro grau sabe que, primeiro de tudo, chanceler é o chefe de governo ou primeiro-ministro em certos países, inclusive Alemanha, e, depois, ministro das relações exteriores ou dos negócios estrangeiros, em outros países, inclusive Brasil. Interessante notar que a mídia não traduz “Secretário de Estado” (EUA) para chanceler. Afinal, o cargo equivale a ministros das relações exteriores em outros países.


Em priscas eras, nos tempos da Guerra Fria, tinha “a” KGB, que a mídia nos informava ser a polícia secreta soviética. E aí cometia logo dois erros de uma só vez: primeiro, que não era simplesmente a polícia secreta coisíssima alguma, mas algo bem mais complexo, quase um Estado dentro do Estado; depois que KGB significava Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti (Комите́т Госуда́рственной Безопа́сности) —em português, Comitê de Segurança do Estado—, e, se era um comitê, KGB não deveria ser “a” KGB, mas “o” KGB, certo?


Recentemente, li um texto sob o título "Cantora e rabequeira, Renata Rosa estréia na tv como musa de Quaderna" —e continua explicando que "estudiosa da rabeca (espécie de violino) e da música regional nordestina, Renata Rosa, 33". Claro que nós, ignorantões, não sabemos o que é uma rabeca, ainda que, de acordo com o próprio redator da "a tradição da rabeca do cavalo-marinho, que surge em algumas cenas, é uma de suas contribuições. 'A rabeca é tradicional em todo o Brasil, mas em cada região tem uma característica particular. No caso do sertão paraibano, a presença da cultura árabe é muito forte. Na série, está dando para mostrar isso um pouco'". É tradicional, mas desconhecida dos leitores dos jornais!


Fico extremamente incomodado com a colocação do significado de algumas (muitas, na minha opinião) palavras entre parênteses, até porque os redatores também se mostram muitas vezes bem ignorantezinhos. Me considero vilipendiado, achincalhado com essa atitude dos redatores, editores, copidesques, escrevinhadores, ou seja lá o que for, do jornal. Penso que estão subestimando minha sapiência, minha conhecença e minha inteligência. É como se me dissessem: veja, seu idiota!, como você é mesmo um iletrado, estou te dizendo o significado dessas palavras.


Tenho certeza de que não sou o único leitor, ouvinte e telespectador que se sente desta maneira. Essa é uma atitude muito arrogante do jornal, que poderia ser solucionada de outras maneiras. Por exemplo: os jornais e revistas poderiam criar dicionários nos mesmos moldes do manuais de redação, que seriam distribuído aos distintos leitores. Claro que os dicionários teria que ser tratado com mais cuidado, para evitar os erros, como encontrei no Manual da Folha. Duas mostras: 1) a cidade de Ladário foi colocada em Mato Grosso, num mapa do MRF; o Manual considera que siglas e acrossemias (acrônimos —vingança!) são a mesma coisa —mas uma coisa nada tem a ver com a outra.


O que é uma bobagem, que nem alguns redatores da "Folha" respeitam. Tirei esse este trecho da coluna "Toda Mídia", de Nelson de Sá: "o jornal dá até o acrônimo do grupo, mais um: Bicsam, de Brasil, Índia, China, África do Sul e México". Sá comete dois erros aí. Primeiro, não obedece o manual do próprio periódico que o emprega, que não reconhece a existência de acrossemias; segundo, que este caso é mesmo de sigla: B de Brasil + I de Índia + C de China + S e A de South África + M de México = Bicsam, uma sigla pura, não um acrônimo. Claro que toda sigla configura um acrônimo, mas nem todo acrônimo é uma sigla.


Não pense que não aprecio o Manual de Redação da Folha. Ele é o meu guia de texto favorito. Como não escrevo tão bem quanto os redatores do jornal, tenho-o (juntamente com outras obras assemelhadas) sempre ao meu lado para me auxiliar quando redijo. Os pequenos erros existentes nele são perfeitamente perdoáveis —quem não erra, né? De vez em quando me apanho escrevendo asneiras ensandecidas.


Mas nem eu escapo disso desses cacoetes jornalísticos. Edito o conteúdo de um site ligado ao meio ambiente. Dia desses, um dos redatores enfiou lá “sinuoso (cheio de curvas)”; não teve argumento para demovê-lo de que aquela era uma atitude arrogante. O mesmo redator, porém, escrevinhou “relicto” em outro texto postado no site —fiz uma rápida pesquisa, e descobri que, de cada dez pessoas, onze não sabem o que significa relicto. Mas ele não colocou nenhuma explicação pro leitor —e nem o Aurélio sabe da existência do vocábulo. Pode procurar


Não faz muito tempo, um repórter (acho que é Burnier o nome dele) de televisão (não sei de qual) usou o termo “intercorrência”. Fiquei esperando a explicação dele. Quase caí da poltrona. Não teve explicação. Santa Clara (padroeira da televisão)!, pensei comigo; isto é um milagre de Santa Clara!


Mas voltemos ao alfarrábio: que tal chamá-lo de Dicionário dos Ignorantes ou Pai dos Burros? Mas se o dicionário ficar muito caro (e vai ficar!), os jornais e revistas poderiam criar glossários ao final, contendo aquelas palavras que os escrevinhadores do jornal consideram “difíceis” para seus desletrados leitores. Tenho até uma sugestão de título pro glossário: Painel do Analfabeto. Ou Acertamos (em contraposição ao "Erramos").


Por mais lucubre sobre o assunto, continuo não compreendendo o porquê das acepções entre os parentes. Elas servem pouco a quem as lê/ouve, até porque não há como confiar nos significados expostos pelos comunicadores; com certeza é muito melhor recorrer aos dicionários, que é o todos deveriam fazer sempre que sentirem necessidade.

Um comentário:

Toninho Moura disse...

Que legal encontrar um blog legal!
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Braços!
Toninho Moura
Capitão Ócio