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Sentei-me no banco de plástico azul escuro do trem do metrô, muito duro e um tanto sujo, e fiquei pensando na minha vida. Lalo era —perdoe-me se falo de mim mesmo na terceira pessoa, mas esta me parece uma forma mais impessoal e adequada de contar a história... Acho que dá o distanciamento necessário para narrar a história com isenção. Como dizia, o Lalo, —isto é, eu—, era —ou é— um cara que sofria de sérios problemas emocionais. Nos seus 34 anos de vida mal vivida, nunca havia encontrado uma solução para sua interminável e onipresente depressão. Lalo sequer sabia a sua causa! Só sabia que nunca estava satisfeito ou completo ou inteiro —feliz, enfim.
Pela Internet (há muito Lalo já não conseguia sair de casa), comprou alguns livros. “O Be-a-bá do Bem Viver”, “A Arte da Felicidade – Um Manual para a Vida”, “Começando com o Pé Direito”, “Ria da Minha Vida Antes que eu Ria da Sua” “Aprendendo a Conviver Consigo Mesmo”, “Sorria! Sorria!” e, é claro, a coleção completa de ensinamentos do bruxo parceiro de Raul Seixas em memoráveis canções do chamado rock brasileiro. Aguardou ansiosamente pelo dia seguinte. Amanheceu, e Lalo se debruçou na janela, onde passou longas horas esperando pela chegada do carteiro. Quando ele chegou, carregando um grande pacote, sua euforia começou.
Os dias que se seguiram foram plenos de incansável leitura e de ensinamentos profundos e tocantes. E por incrível que tudo isso possa parecer, Lalo começou a sentir-se melhor. Muito melhor. Já saía de casa, voltou a procurar emprego, namorar, ir ao cinema —até uma ou outra rodada de cerveja com alguns amigos nos fins de tarde voltaram a acontecer em sua vida. Era um novo homem. Renovado pelos livros de auto-ajuda que carregava debaixo do braço —como se tudo mudasse através de suas axilas, através de um insólito processo de osmose. Onde quer que fosse, lá estavam os livros. Paulo Coelho era o seu deus, e seus livros – que o guindaram à Academia Brasileira de Letras –, a sua bíblia.
Tem que numa bela e ensolarada quarta-feira de inverno, Lalo tomou o metrô no meio da tarde. Era seu terceiro dia no novo emprego —vendedor de uma loja de discos, ofício que apreciava sobremaneira, sobretudo por causa de sua paixão pela música—, e estava muito feliz e confiante. Para distrair-se durante o trajeto, abriu o terceiro volume da série “De bem com a vida” e retomou a leitura de onde havia parado, já quase no meio do volume. Repetia em voz alta, conforme o livro pedia, frases como “sou feliz comigo mesmo” e “sou um bom homem e todos me adoram” ou ainda, “nada me fará infeliz”.
Maycon, ou Panguinha, definitivamente não o adorava. Panguinha estava sentado ao seu lado. E certamente o estava odiando. Panguinha nunca havia visto Lalo na vida, mas era obrigado a ouvir aquela estúpida cantilena. Ele já havia sentado em vários outros bancos do vagão vazio, mas de nada adiantou. Panguinha não agüentava mais aquele blá-blá-blá. Panguinha levantou-se, postou-se ao lado de Lalo, sacou da sua pistola, uma Glock 24 calibre .40 semi-automática e, sem pestanejar, atirou à queima-roupa na cabeça de Lalo. Lalo morreu na hora, com um pequeno furo logo acima do ouvido esquerdo e um enorme buraco sangrento logo abaixo do ouvido direito.
Lalo sequer teve tempo de fechar os olhos. E pela primeira vez na vida, Lalo era um homem feliz. Panguinha também —afinal, agora havia silêncio. Panguinha nem correu—, ficou ali, no enorme e frio vagão vazio, em frente ao corpo caído de Lalo, vendo o sangue muito vermelho pingando dos lados da cabeça de Lalo, que o olhava com os olhos vidrados. Depois de alguns minutos, depois que o trem parou na estação, Panguinha tomou seu caminho. Na posição em que estava, com a cabeça apoiada no encosto do assento da frente, eu ouvia também o sangue pingando no piso de plástico... E via Panguinha se afastando com um andar gingante. Eu quis falar com ele. Eu quis perguntar porque ele havia me matado. Eu quis gritar. Eu quis pedir ajuda. Mas não podia me mover...
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