segunda-feira, 2 de novembro de 2009

[Existe televisão depois da morte?]

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Tem gente que possui a crença profunda na idéia de que a televisão de fato existe. Entretanto, apesar dos fenômenos bizarros a ela relacionados, alguns cientistas do mundo inteiro, mais cautelosos e partidários desta ficção espantosa que se chama “o fato”, duvidam da existência da televisão como tal, atribuindo seus efeitos a um vírus não filtrável, isto é, um agente de doença invisível, que passa através dos filtros e só pode ser cultivado em presença de células vivas que sejam suscetíveis, também conhecido como ultravírus ou tvírus.

Em resumo, esses homens de ciência defendem a teoria de que a tv não passa de uma moléstia pandêmica dos grandes centros urbanos e neurológicos, transmitida através de bizarras caixas de plástico ou madeira, chamadas receptores, que têm antenas, quatro ou mais patas, cíatos, um grande olho brilhante —que se torna ativo, como nos mosquitos, à hora do crepúsculo—, cinescópio, iconoscópio, e são acéfalos ou anencéfalos, além de super-heteródinos —os mais modernos utilizam sistemas como plasma, cristal líquido (lcd), díodos emissores de luz (led) e outros.

Surgida originalmente no hemisfério setentrional (ou hiperbóreo), suas primeiras vítimas foram detectadas nos EUA, Alemanha e Inglaterra, depois na Itália, França, Belarus, Macedônia, Bósnia Herzegovina, Croácia e outros países da Comunidade Econômica Européia. Segundo os especialistas no assunto, também conhecidos como teleologistas, a tv ataca principalmente o cérebro, o cerebelo e o telencéfalo, apresentando a curiosa capacidade de devastar tanto pessoas vivas quanto gente já defunta. Isto, aliás, seria explicado pelo fato de que criações dos grandes gênios da humanidade, quando acometidas pela tv, transformarem-se em fantasias pueris, cretinas e ocas.

Hoje, a televisão fala os idiomas de todo o mundo. Aqui, no Brasil, segundo o jornal Folha de S.Paulo, “do galego ao árabe, do japonês ao hebraico, a tv brasileira é uma verdadeira ‘torre de Babel’. Nela, o telespectador pode encontrar onze línguas. distribuídas em canais internacionais e/ou programas feitos no Brasil por descendentes de imigrantes”. Dizem os especialistas que não demora muito a tv brasileira vai conseguir falar em português. O que eu acho pouco provável.

Ao descrever os sintomas, os cientistas observam que as pessoas afetadas pela tv passam horas diante do olho brilhante, julgando observar ali uma infinidade de imagens fascinantes. Alguns animais domésticos, além de seres humanos, também são suscetíveis à moléstia, como é o caso de inúmeros gatos, cães, papagaios, antas e peixinhos de aquário que acabam tão fascinados quanto homens e mulheres, crianças e idosos, veados e lésbicas.

Mas o animal doméstico que mais gosta de tv é a mosca (dípteros esquizóforos da subordem dos ciclórrafos). É notável a freqüência e a obstinação com que este díptero costuma aparecer, seja participando das imagens que as pessoas acometidas de tv (telepacientes ou telespectadores) imaginam ver no vídeo —nas orelhas dos atores das novelas, no nariz dos apresentadores de telejornais, na testa de políticos entrevistados etc.—, seja ela mesma participando como telespectadora amiga, pousando (e posando) e decolando da tela. O fato da mosca ser vidrada em tv pode ser explicado pela especial preferência que o asqueroso inseto demonstra por matéria fecal ou coisas em estado putrefato ou malcheirosas.

Certos povos da Lapônia, algumas tribos da Amazônia interior, ugro-fineses da Europa setentrional e outras gentes menos votadas são imunes à tv e suas conseqüências. Em compensação, particularmente vulneráveis são donas de casa, senhoras de certa idade, crianças, políticos —já notou o que tem de político em Campo Grande dando uma de apresentador de televisão, e cada um pior que o outro?!) e deficientes mentais.

Nos casos mais agudos, o telespectador —pessoa acometida pela moléstia— perde o interesse por tudo que não seja tv, fica preguiçoso, abandona a família, deixa de comer e passa os dias estático diante da telinha, olhos vidrados nos conjuntos de imagens a que chamam de programas, shows, telejornais, reality shows, aos quais dá nomes extravagantes como Um Contra Cem, Big Brother Brasil, SuperNanny, Malhação, Octopus, Domingão do Faustão, Pânico na TV, Gordo Chic Show, Caras & Bocas etc. e tal.

Estes —e outros— são programas de televisão que, quando a gente liga, não consegue mais desligar —dorme imediatamente. As vezes fico pensando se não estou redondamente (ou quadradamente) enganado: os que vivem combatendo a televisão deveriam ser mais humildes ao emitir juízo de valor a respeito dela; afinal, 100 milhões de cretinos (só no Brasil) não podem estar totalmente errados. Na verdade, a televisão parece ser um sistema de solução sem problema.

Na fase terminal nota-se a liquefação parcial ou total da massa encefálica, dislogia, esquizoidia, encefalocele galopante e uma profunda frenoplegia. Esses fenômenos são perceptíveis tanto naqueles telepacientes que assistem tv, quanto naqueles outros que pensam que estão produzindo as imagens. Talvez seja por isso tudo que o humorista Millôr Fernandes tenha afirmado que “uma coisa não se pode negar à tv: ela não tem medo de insultar a inteligência do telespectador”.

Depois de escrever tudo isso e analisar profundamente a questão televisiva, penso na morte (até porque estou escrevendo estas mal-traçadas no Dia dos Finados de 2009) e fico apavorado lucubrando sobre uma questão transcendental: será que existe televisão depois da morte?

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