terça-feira, 10 de novembro de 2009

[A culpa é dos outros]

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Por que se queima Judas nos sábados de aleluia? Não será, por certo, para punir a delação. Entre os seviciadores do canhestro boneco das semanas santas haverá traidores, cafetões, vigaristas, traficantes, gente disposta a todas as falcatruas para empulhar os seus semelhantes. Com certeza não será para castigar a perfídia.

Diante das chamas que lambem o mal-ajambrado e bufo bonifrate, brilharão os olhos do pedófilo, da esposa infiel, do político de má cepa, do desertor, do difamador e do pusilânime. Não será para vingar o Cristo. O Filho do Homem já se foi há muito tempo —e, afinal, quem pensa mesmo no romântico judeu da Galiléia durante a queima do homem leviano de Karioth?

No sábado de aleluia acaba-se realizando uma orgia selvagem, uma barbaridade impossível de enquadrar-se na doutrina do reformador nazareno —trocando em miúdos, é uma prática anticristã, diabólica. Os evangelhos cristãos narram que o Filho do Homem perdoou, no momento em que morria, o canalha que, por míseros trinta dinheiros, o traíra impiedosamente. Para o Cristo, o arrependimento nunca vinha tarde demais —e Judas, o de Karioth, procurou no enforcamento a expiação da sua culpa. Cristão seria perdoar o traidor, o delator, mesmo quando prejudicado fosse, como foi, aquele que se dizia o Filho do Todo Poderoso. Mas ficou a prática anticristã, mas humana, e de cunho político.

Nos primeiros séculos de Cristianismo, haveria a necessidade —a bem dizer política— do doloroso ritual. Os cristãos, partidários de uma religião ilegal dentro do onipotente e onipresente Império Romano, reuniam-se em catacumbas, em plagas esconsas, sob o maior sigilo e mistério. E, claro, era necessário criar uma consciência contra o delator, contra os possíveis Judas que poderiam determinar, não já a crucificação do Cristo —que afinal de contas viera mesmo ao mundo para, com o seu sacrifício, redimir a humanidade—, mas a dos propagadores dos seus ideais de fraternidade, pobres e humildes elementos do underground.

Assim, a queima do Judas se tornou uma prática católica, ainda que não-cristã. Com grande insistência a Igreja Católica —entre todas as seitas cristãs a que mais traiu os ensinamentos do Cristo, de maneira a desfigurá-los, criando abismos entre a teoria e a prática— denunciou os traidores, os infiéis, os apóstatas, e perseguiu os hereges. Hoje, a necessidade político-religiosa da cerimônia medieval da queima do Judas não tem mais razão de ser. O hábito, entretanto, ficou. Por quê?

Haverá traidores, prostitutas, caloteiros, maridos e esposas infiéis, difamadores, covardes, levianos, toda a escória da humanidade, a apreciar o ato selvagem da queima, em efígie, do homem de Karioth. “Quem lhe poderá atirar a primeira pedra?” – perguntaria o Cristo. Toda essa assistência —sem dúvida seleta— sabe apenas que ali está por se tratar de um divertimento cujo caráter popular aumenta a capacidade de difusão das dores e atribulações individuais, dissolvendo-se no meio da massa anônima que ri, que grita, que se enrosca de prazer, vendo o sofrimento simbólico do autor da mais sensacional das traições. Ninguém se lembrará do Cristo.

O homem de Karioth encarna, não uma coisa abstrata como a delação, a traição, a deslealdade, mas o bolicheiro da esquina, o patrão, locatário da casa, a dona do lupanar, o agiota, o Leão, a sogra rica que não quer morrer, o adversário político, o homem importante que corre com o carrão importado acendendo invejas impotentes. Estralejando, queimado e iluminado pelas chamas que o consomem, injuriado e coberto de infâmia, Judas, o de Karioth, simboliza, por um momento, o ódio e a desesperança do homem comum contra o sofrimento a que está condenado.

São sentimentos inconsciente e grosseiramente voltados contra as classes sociais imediatamente superiores à sua humilde condição —contra os burgueses das cidades e os latifundiários do campo. Judas vale como um desabafo, como uma explosão contra as amarguras da inferioridade social, a que somente a luta política comum pode dar conteúdo e forma superiores e mais vigorosos.

Aquilo que se convencionou chamar de “sentido de ordem”, criado pelo catolicismo, se anula nessa orgia —nessa forma rudimentar de luta política— em que o povo se afirma contra seus exploradores econômicos, intelectuais e políticos, na sua eterna e insaciada sede de justiça, sempre lembrada quando se aproximam as eleições.

Se a gente olhar para as pessoas que cometem as atrocidades contra o boneco Judas vai descobrir que elas são como todos nós —comem, dormem, transam, vão ao cinema e ao banheiro. Mas essas pessoas se sentem pouco à vontade de saberem que entre elas e um serial killer não há muita distância, um simples verniz separa a mais pacata dona de casa de ser a próxima açougueira do bairro. Ou o médico conceituado de tornar-se o pedófilo execrado.

Às vezes precisamos por essas pessoas “do outro lado” —não os malhadores do homem de Karioth, mas os criminosos de sempre—, nos distanciarmos delas, para podermos dormir tranqüilos e sonhar que o mundo só é feio e malvado “lá fora” e que somos pessoas melhores que as outras.

Mas não adianta espernear, adianta só assistir ao modo como as coisas se desenvolvem, ver cada vez mais vezes as pessoas “terceirizarem” suas culpas e crucificarem tudo que achem estranho, ou não adequado aos seus padrõezinhos morais. Não importa se os assassinos lêem Paulo Coelho, vêem Tropa de Elite, ouvem a Xuxa em seus mp3 ou mp4 e rebolam ao som da dança do créu, a culpa sempre é deles, dos outros, e somente deles, pois não há meio ou obra que justifique ou condicione a pessoa a tal ponto. Quem aperta o gatilho?

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