sexta-feira, 23 de outubro de 2009

_Olha o Big Brother aí do teu lado

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Obediência não é o suficiente. A não ser que uma pessoa esteja sofrendo, como você pode ter certeza que ela está obedecendo à sua vontade e não você à dela? O poder está em infligir dor e humilhação. O poder está em rasgar mentes humanas em pedaços e colocá-las juntas de volta em novas formas escolhidas por você mesmo. Você começa a enxergar agora o tipo de mundo que estamos criando? (...) Não haverá lealdade, a não ser lealdade ao partido. Não haverá amor, a não ser amor ao Brig Brother (Grande Irmão Mano Véio). Não haverá riso, apenas o riso de triunfo sobre um inimigo derrotado. Não haverá arte, literatura ou ciência. Quando formos onipotentes, já não haverá mais necessidade de ciência. Não haverá distinção entre a beleza e a falta dela. Não haverá mais curiosidade, nem alegria no processo da vida. Todos os prazeres competitivos serão destruídos. Mas sempre -- não se esqueça disso, Winston -- sempre haverá a intoxicação do poder, sempre aumentando e sempre crescendo sutilmente. Sempre, a cada momento, haverá o tremor da vitória, a sensação de pisar num inimigo que já está sem esperança. Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando num rosto humano -- para sempre. Trecho do livro “1984”, de George Orwell.

“1984” é, possivelmente, o mais famoso dos romances de George Orwell. O autor obteve o título invertendo os dois últimos dígitos da data em que o iniciou: 1948. No livro Orwell conta-se a história de Winston Smith, um apagado funcionário do Ministério da Verdade de Oceania —uma nação fictícia— e de como ele parte da indiferença perante a sociedade totalitária em que vive, passa à revolta, levado pelo amor por Júlia, sua amante, e incentivado por O'Brien, um membro do Partido Interno com quem Winston simpatiza; e de como acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada pelo partido no poder. E também de como todo homem tem os seus limites.

De fato, “1984” é uma metáfora sobre o poder e as sociedades modernas. Orwell escreveu-o animado de um sentido de urgência, para avisar os seus contemporâneos e as gerações futuras do perigo que corriam, e lutou desesperadamente contra a morte —sofria de tuberculose— para poder acabá-lo. É tão brilhante que assusta. Ele foi um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda que percebeu para onde o estalinismo caminhava e é aí que ele vai buscar a inspiração —lendo “1984” percebe-se facilmente que o Big Brother, ou Grande Irmão, não é senão Stalin e que o arquiinimigo Goldstein não é senão Trotsky.

Numa altura em que o programa Big Brother faz furor na televisão, talvez poucos saibam que a expressão foi tirada deste livro e dos cartazes que ornamentavam as ruas de Londres no romance de George Orwell e nos dois filmes nele baseados —uma fotografia do Grande Irmão com a legenda “Big Brother is watching you” (“O irmãozão tá te vigiando”, em português). Toda a sociedade tem vídeos que mostram propaganda, suposto divertimento, e dizem o que deve fazer e vigia-o cidadão 24 horas por dia, para sempre, em todos os lugares! O cidadão ama o Big Brother —em português Irmãozão ou “Mano Véio”. Tem de amá-lo, ele é tudo para si... mesmo que não seja!

É a ditadura levada ao extremo. Uma ditadura que deixou de se preocupar com os motivos. O poder é tudo, e para se perpetuar e aumentar vale tudo, até matar leais membros do partido ao menor sinal de fraqueza. A ditadura baseada no ódio. Odeiam-se as potências estrangeiras, uma de cada vez, pois a outra é aliada —enquanto isso o passado é apagado e reescrito constantemente. Será que neste mundo abjeto que despreza completamente tudo o que é sentimento, poderá haver espaço para uma paixão arrebatadora? Será que há esperança de revolta?

O Estado controla o pensamento dos cidadãos, entre muitos outros meios, pela manipulação da língua. Os especialistas do Ministério da Verdade criaram a novilíngua, um idioma ainda em construção, que quando estivesse finalmente completa impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao regime. Ironicamente, esta acabou por ser uma das previsões que acabou por se concretizar, não numa ditadura, mas numa sociedade aberta como os Estados Unidos, através do “politicamente correto” —politicamente correto que nós adoramos no Brasil. Uma das mais curiosas palavras da novilíngua é duplipensar que corresponde a um conceito segundo o qual é possível pensar simultaneamente uma coisa e o seu contrário.

No livro, Orwell expõe uma surpreendente Teoria da Guerra. Segundo ele, o objetivo da guerra não é vencer o inimigo nem lutar por uma causa. O objetivo da guerra é manter o poder das classes altas, as elites, limitando o acesso das classes baixas, carentes, à educação, à cultura e aos bens materiais. A guerra serve para destruir os bens materiais produzidos pelos pobres e para impedir que eles acumulem riqueza e se tornem uma ameaça aos poderosos. Ironicamente, Orwell acertou mais uma vez.

Num país relativamente livre e democrático como os EUA, formou-se um complexo militar e industrial que tem todo o interesse em criar uma corrida às armas e em fomentar guerras para que o dinheiro dos impostos seja derretido em armas e bombas —além de aumentar a pobreza em países inimigos e aliados. O mais interessante é que o complexo militar e industrial emergiu do interesse egoísta dos capitalistas, mas acaba por ter um impacto indireto na manutenção do status quo. Mas o complexo militar e industrial não é um fenômeno exclusivamente norte-americano. Todos os países têm os seus grupo de poderosos a manufaturar produtos inúteis às custas do dinheiro dos impostos pagos pelos pobres.

Talvez sem pensar nisso, os cidadãos hoje são tão controlados como o são os personagens de “1984”. Através de meia dúzia de números o Estado pode seguir o nosso percurso e a nossa vida. Com o número de contribuinte, o número de eleitor, o rg, o PIS, uma pessoa está definida. Hoje em dia, uma infinidade de câmeras de tv —nos bancos, nos elevadores, nos salões, nas repartições, nos restaurantes— estão permanentemente vigiando as pessoas. Será isso mau? Bom? Necessário? Inevitável? Passageiro? As emissoras de televisão vendem-nos a informação que convém. O que se sabe atualmente nunca é o que se passou, mas o que alguém quer que se saiba. A publicidade passou da fase em que vendia coisas simplesmente inúteis, para a fase em que vende coisas que fazem mal —embora informando o fato em letras pequeninas. Resta ao cidadão a liberdade de pensar.

O livro é absorvente. Orwell, um jornalista britânico que escreveu algumas das melhores críticas políticas em forma de livro (veja “A Revolução dos Bichos”), escreveu o romance no fim da vida, lá pelo início da Guerra Fria, enquanto era minado pela doença. Pode-se considerar que Orwell estava ele próprio angustiado com a doença que o estava a matar, e em simultâneo ainda revoltado com os horrores da Guerra. no entanto lançou um aviso, e, à luz dos fatos atuais, não foi ouvido. O livro inspirou diversos autores posteriores, especialmente argumentistas e roteiristas de cinema. Inspirou também fenômenos televisivos, da forma mais cruel: a vigilância constante, a falta de privacidade.

Quando o Big Brother Brasil estreou há alguns anos no País, a TV Globo lançou aqui um programa de sucesso estrondoso em cada um dos mais ou menos 20 países em que foi exibido. Desde a estréia do primeiro, na Holanda, em 1999, o Big Brother já foi adaptado —e bateu recordes de audiência— em países como Alemanha, Inglaterra, EUA e até Portugal e África do Sul. Mas a emissora sabe que o lançamento não é tão lançamento assim. Para todos os que assistiram à "Casa dos Artistas", do SBT, o programa deve trazer uma sensação de dejà vu. Por isso, a emissora desenhou o projeto com estratégia de guerra.

Basicamente, o Big Brother Brasil é um filhote do original. O modelo é o consagrado no Brasil por Casa dos Artistas: 12 pessoas —na versão holandesa, que começou com nove, chegou a 18— ficam isoladas do mundo em uma casa, com a missão de conviver, observadas por câmeras e microfones 24 horas por dia. Na maior parte dos países, a convivência dura 90 dias. No Brasil, a "Casa dos Artistas teve a metade disso. O programa da Globo confina seus participantes por 60 dias —o prazo pode mudar dependendo dos índices de audiência. O público assiste flashes diários e, em um programa semanal, escolhe um para deixar a casa. No final, aquele que restar é o vencedor.

Além de ser exibido na tv aberta, o programa pode ser acompanhado em canais paga-pra-ver, na Internet e em flashes em emissoras de rádio. É gente comum em casa, vendo gente comum (mas nem tanto!) na tela. O sucesso esperado aqui é reflexo do percurso internacional. A fórmula do Big Brother se espalhou rapidamente pelo mundo, dando a impressão de que o “Grande Irmão” está em todo lugar.

O romance ganhou duas versões no cinema. A primeira é de 1956, realizada pelo diretor britânico Michael Anderson, mas foi a versão feita em 1984 que ganhou importância. Dirigida por Michael Radford, que depois faria “O Carteiro e o Poeta”, teve os atores John Hurt (Winston Smith), Richard Burton (O´Brien) e Suzanna Hamilton (Julia) no elenco. Há uma nova versão projeta pra começar a ser filada no ano que vem. Martin Rosemblum, produtor do filme, está processou a Endemol holandesa e a CBS, que exibe o Big Brother americano, pelo uso do nome do personagem, de quem detém os direitos. Lá como cá, o programa é motivo de briga. Como se vê, ninguém é totalmente honesto.

Brilhante, o livro de Orwell foi execrado na década de 1980: muita gente, críticos, analistas, jornalistas, passaram a dizer que o escritor havia errado tudo em suas previsões. Vê-se hoje, que ele acertou em muita coisa. Agora, vigia-se, para fins de entretenimento, apenas umas poucas casas em 20 países —mas o pequeno primeiro passo foi dado. Se não se fizer nada, logo se poderá vigiar —para fins bem menos amenos – todas as casas de todos os países.

Até porque hoje somos vigiados em quase tudo fora de casa. Aqueles glifos que encimam a frase "sorria, você está sendo filmado" significam que tem alguém gravando as nossas imagens em tudo quanto é canto: em supermercados, elevadores, consultórios médicos, postos de gasolina, bancos, lotéricas etc. etc. e tal. Em muitas cidades (inclusive cidades brasileiras), as câmeras vigiam os cidadãos nas ruas a pretexto de fiscalizar o trânsito. Lá do alto, os satélites nos vigiam 24 horas por dia (o Google Earth dá uma palinha disso num clicar do mouse) com câmeras poderosíssimas.

Apesar de ninguém parecer se importar com isso —nem no Brasil nem em outros países—, fica a certeza de que em qualquer regime político tem sempre um Big Brother te vigiando —resta-nos torcer para ele que seja incompetente, um Mano Véio à brasileira. Um exemplo disso foi a última edição do BBB da Globo: ninguém lembra do nome do vencedor; porém todos sem recordam da segunda classificada, mas não porque ela estava na Globo, mas porque apareceu numa revista masculina mostrando aquilo que os moralistas de plantão chamam de partes pudendas.

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