terça-feira, 20 de outubro de 2009

_Crônica de malandragem

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Mesmo sendo vista como um dos traços característicos do brasileiro. a malandragem deriva de malandrino, palavra italiana que significa salteador, bandido, bandoleiro. No Brasil, malandro é o sujeito que, geralmente, não trabalha e vive dando golpes e fazendo falcatruas, pequenos ou grandes, mas de qualquer forma, abusando da confiança e da ingenuidade do próximo. Conforme a entonação que se dá ao termo pode significar esperto ou espertalhão. É, certamente, um dos insultos mais populares das terras tupiniquins.

Mas a tal de malandragem e seus agentes, os malandros, vai além dessa definição simplista. A malandragem (os dicionários definem malandro como indivíduo esperto, vivo, astuto, matreiro) vem do Brasil Colônia e inclui o Pedro Malazartes do folclore, Gregório de Matos, um gênero de humorismo popular, a imprensa cômica e satírica da Regência, um veio na literatura culta de nosso século XIX, e culmina no século XX, com “Macunaíma” (Mário de Andrade) e “Serafim Ponte-Grande” (Oswald de Andrade), em que é estilizada e elevada a símbolo. Está, portanto, bem longe do mau-caratismo, que está mais para velhacaria do que para malandragem.

Numa sociedade imbecilizada como a atual, um dos traços mais marcantes que demarcam uma cultura provinciana, parece imperar sem fronteiras: a maioria das pessoas insiste em aprender de cor e salteado a tabuada da “indústria do pensamento” (atenção, pessoal, Big Brother, os CQCs, os Pânicos da vida estão aí...). Resultado da operação: todos se sentem à vontade para transpor linha —sutil, mas clara—, que separa a malandragem da velhacaria, da canalhice.

A malandragem sempre esteve presente nos mais variados aspectos e estamentos da vida brasileira, mas principalmente nas artes, na música, na literatura, nos esportes, na política, no futebol principalmente (jogo de malandros, como se dizia antigamente). A diferença entre velhacaria e malandragem pode ser simbolizada por dois astros da música popular e do esporte: o sambista Moreira da Silva, o símbolo do malandro no samba, e Kaká, o jogador de futebol que se dá a ares de bom-mocismo mas está sempre com um pé do outro lado da linha da seriedade.

Moreira da Silva, ou Kid Morengueira, é o representante de uma geração que vestia terno de linho branco, calçava sapatos bicolores e usava chapéu panamá. O cantor de sucessos como “Acertei no Milhar!”, “Amigo Urso”, “Arrasta a Sandália” e “Risoleta” é considerado a personificação da malandragem que imperava nos morros e no centro do Rio na década de 1920. Naquela época, os bons malandros gabavam-se de não ter que enfrentar os dissabores de um dia de trabalho e do sucesso que faziam com as mulheres.

Mais atual, o jovem príncipe Ricardo Izecson dos Santos Leite, mais conhecido pelo codinome Kaká, um dos mais populares jogadores de futebol do mundo, faz proselitismo religioso descaradamente nos campos de futebol envergando camisetas com textos do tipo I belong to Jesus (eu pertenço a Jesus, em inglês), banca o modelo sporno em publicidade dirigida a gays e defende publicamente sacerdotes evangélicos celerados.

Costuma-se, no Brasil, associar a corrupção aos agentes políticos. Mas a corrupção está em todo lugar —dentro e fora dos campos de futebol, das cortes de Justiça, dos palcos, dos gabinetes governamentais, das redações dos jornais, dos plenários parlamentares e até das sacristias. O humorista Millôr Fernandes diz que “malandragem é a arte de disfarçar a ociosidade”. Quer dizer, é o jeitinho brasileiro de fazer as coisas de um modo mais fácil, mas não de sacanear os outros. Não foi à toa que o malandro Moreira da Silva afirmou, já velhinho aos 97 anos, pouco antes de morrer no último ano do século 20 (ele morreu a 6 de junho de 2000) que “hoje não existem mais malandros, só bandidos”.

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