domingo, 3 de agosto de 2008

Estoque de beleza


"Não há nada mais terrível que a ignorância ativa".
Johann Goethe

Em entrevista recente com a engenheira química Sonia Hess, professora da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e uma das mais polêmicas ambientalistas do país, ela saiu-se com uma expressão muito forte ao referir-se ao Pantanal: estoque de beleza. No decorrer da entrevista não foi possível aprofundar com a professora esse conceito do "estoque de beleza". Eu, porém, resolvi agora tornar tangível, à minha moda, esse conceito: o Pantanal tem muito mais valor pela beleza que encerra em sua superfície do que pela exploração das suas matérias-primas.

Para Hess, a preservação da região é fundamental, até porque a beleza, diz Oscar Wilde, "é a única coisa no planeta contra a qual a força do tempo nada pode: a política não se sustenta nas suas bases falsas; as filosofias se desmancham como areia; as crenças sucedem-se uma após a outra; a História muda seus rumos de acordo com os vencedores. Mas o que é belo é uma alegria para qualquer época, em qualquer tempo; e é algo que pertence a toda a humanidade para sempre". É imutável.

Mas estamos deixando a beleza de lado: mais freqüentemente do que seria aceitável, nossa visão contemporânea das coisas é encoberta pela doutrina do utilitarismo, a idéia fundamental que afirma que o valor das coisas, inclusive dos seres humanos, depende exclusivamente da sua utilidade. Esse óptica leva, inevitavelmente, a muitos dos conflitos que assombram o mundo moderno: o culto da eficiência, a busca da linha de base e da produtividade máxima a qualquer custo e a idéia de que a própria natureza é meramente uma fonte de matérias-primas e insumos para ser explorada à exaustão, ao esgotamento. Em um tempo em que os conceitos de utilidade triunfam sobre a experiência da beleza e do prazer, nossa experiência do mundo torna-se muito mais uni-dimensional e insatisfatória. Chegamos ao ponto de criticar o hedonismo como algo pecaminoso.

Em outras palavras, a crença no utilitarismo leva ao reducionismo e à sociedade de consumo. Na ideologia consumista, o indivíduo —que já foi visto como um espelho das infinitas possibilidades da criação— é reduzido ao status de consumidor, mero coadjuvante econômico no sistema mecanicista de produção e consumo que leva à relegação e, finalmente, à destruição da beleza do mundo natural. Hoje em dia os humanos, principalmente as mulheres, são capazes de destruir suas próprias belezas naturais —colocando seios, bundas, coxas e outras partes de suas anatomias artificiais— em busca de um pretenso embelazamento midiático.

Seria uma das grandes mudanças da era atual reafirmar a dignidade da humanidade e da noção de que a finalidade da vida não é apenas a sobrevivência em nome da utilidade, mas a experiência da beleza, prazer e criatividade. Na Renascença, por exemplo, a arte e a educação foram vistas como amplos caminhos nos quais poderíamos aprofundar nossa experiência de vida. De acordo com essa visão, o humanitarismo não está separado da vida diária, mas reflete a trama de temas eternos com os quais nossa vida está entrelaçada. A partir desta perspectiva, a arte não pode ser separada da vida diária; melhor, a vida bem vivida é uma obra de arte. A arte, uma vez que não possui valores utilitários, não é essencial para a vida, por isso é um reflexo da própria vida.

Infelizmente, o conceito do utilitarismo tem afetado profundamente a educação, principalmente nossas idéias sobre a universidade. Melhor que cultivar e preservar o que é bom e bonito na natureza humana, a tendência da educação superior nos últimos séculos, notadamente os séculos 19 e 20, tem sido transformar as instituições de ensino superior em meras escolas vocacionais —a idéia final é formar gente pra produzir. Certamente, indivíduos que são melhor treinados merecem empregos mais recompensadores que aqueles que não o são; mas quando a meta financeira se torna primária, a educação simplesmente se torna um meio para atingir o fim, e inócua em um profundo sentido; ela falha em aprofundar as nossas experiências de beleza e de prazer na vida diária.

Sob essas condições, a educação assume um caráter industrial, e aumenta a tendência em direção à especialização acadêmica sem sentido na humanidade, levando a uma lacuna ainda maior entre a humanidade e a vida diária. A humanidade assim, torna-se artificialmente separada do seu contexto perene, do mundo concernente ao humano e que possui relevância cultural. Compreensivelmente, com o tempo, muitos jovens adultos saem da universidade e se sentem frustrados por não avançar pelo caminho escolhido. Para muitos, deixar a universidade é o fim de suas relações com a humanidade.

Muita coisa está sendo feita da forma errada, estúpida. O processo educacional deveria atrair as pessoas e não aliená-las. Quando alguém deixa a escola, deveria sentir a humanidade como uma fonte de beleza e prazer, de hedonismo —como uma fonte insubstituível para aprofundar nossas experiências diárias— por tê-los testado, em primeiro lugar. E mais, com a finalidade de obter isso, nossas fantasias acerca da educação superior precisarão, uma vez mais, ser inspiradas por uma mitologia próxima daquela do humanismo da Renascença, ao invés de uma perspectiva exclusivamente utilitária.

E fica a pergunta: qual é a finalidade da educação? Educação, basicamente, treina as pessoas em habilidades e técnicas que irão ser necessárias para a vida. Estes fundamentos são necessários, mas não são a meta da verdadeira educação, nem resultam em felicidade —tanto a felicidade pública quanto a privada. A filosofia da educação em seus fundamentos, está baseada nas idéias de John Locke, da mente como uma tábula rasa, uma lousa em branco ou um recipiente vazio esperando para ser preenchido de fatos e informações. Esta é uma visão popular em nossa época quando a informação se confunde com conhecimento genuíno.

Um passo acima da teoria da tábula rasa é a visão que, ao invés de encher um tanque vazio, o propósito da educação é o de treinar pessoas em técnicas específicas. Esta visão sugere que a função mais nobre da educação é "aprender a aprender". Sem dúvida, esta é uma habilidade valiosa, mas sem uma recompensa ainda maior, este é apenas uma variação do tema do consumismo.

Pode ser que está idéia pareça surpreendente, mas penso que a verdadeira finalidade da educação na humanidade é erótica —erótica, de Eros, no sentido de instilar desejo pela beleza, bondade e pelo cultivo da própria humanidade pessoal. Em outras palavras, a finalidade da educação é desenvolver a paixão e amor por tudo o que é bom, e neste sentido, aprender torna-se uma atividade prazerosa. Na Renascença alguém escreveu que "há uma correspondente profundidade no conceito de humanitas. É através dele que o homem é definido e consiste na capacidade em amar. 'Venus significa humanidade'. Humanidade é o amor que se expande através do universo e é manifestado pelo homem". Isto talvez explique melhor esse conceito de erotismo.

Na visão platônica, amor —e aprendizado— é Eros ou o desejo nascido pela beleza. Colocado em termos psicológicos por James Hillman, "uma visão exaltada da suprema beleza é uma idéia necessária para a composição da alma-artística que chamamos de existência": o aprendizado da existência é uma parte integral da composição da alma-artística. Essa beleza divina tem gerado amor, isto é, um desejo por si mesmo, em todas as coisas. Mesmo se Deus atrair o mundo a ele mesmo, e o Mundo é atraído, existe uma certa atração contínua (começando em Deus, emanando ao Mundo e retornando, no final, para Deus) que volta uma vez mais, como num círculo, ao mesmo lugar de onde saiu.

De acordo com o modelo da tábula rasa, a mente é um jarro vazio esperando para ser preenchido. De acordo com o modelo técnico, nós precisamos apenas aprender a aprender. De acordo com o modelo erótico, a finalidade da educação é o prazer e a fertilidade. Existem diferentes tipos de fertilidade. Existe uma fertilidade da natureza, a fecundidade de plantas e animais, mas também existe a fertilidade da alma. Quando a alma é fertilizada, torna-se plena, preenchida, isto é, grávida com o belo e espontaneamente produz trabalhos maravilhosos. Esta é a autêntica finalidade da educação, e este é o sentido do estoque de beleza da professora Hess, penso eu.

Em resumo, só vamos mudar se mudarmos todo esse sentido utilitarista e laboracional de educação; deveríamos ser educados não para trabalhar, mas para a contemplação e para o ócio: nenhum olho jamais viu o sol sem se tornar ele próprio um sol, nem pode a alma ver a beleza sem se tornar bela. Você precisa primeiro, tornar-se em tudo, semelhante à natureza e em tudo, belo, se você tem a intenção de ver Deus e a beleza.

Voltando ao Pantanal —e ao ambiente de forma global—: pelo andar da carruagem (e de outros veículos não tão limpos), logo destruiremos seu estoque de beleza. Segundo Sônia Hess, não mais de cinco anos para que o ecossistema pantaneiro, com todo o seu estoque de beleza, se torne um deserto. Tudo porque, entre políticos, governantes e empresários utilitaristas há um enorme deserto de idéias.

lucamaribondo@gmail.com

Um comentário:

che disse...

Puxa...como é bom ler artigos como este...é prioritario termos acesso a produções de pessoas com coerencia, competencia e sabedoria...
Saudadessss...
Bjsssna Arilma,nas meninas e um grande para vc...
Com carinho,
Chereza