terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Fazer mais e mais


“Só cada pessoa pode ser juiz de sua própria vida”.
Henry David Thoreau

Diz Jean Baudrillard que "nada demonstra com mais clareza que hoje o único problema verdadeiro é o silêncio das massas, o silêncio da maioria silenciosa". Pode-se dizer que Baudrillard não sugere alternativas e, muito ao contrário, entenda que as massas não querem nem poder nem responsabilidade, isto só se dá porque acredita que seriam uma espécie de buraco negro, assimilando tudo sem qualquer eco. Porém não se trata somente da patuléia, mas também de indivíduos —principalmente estes.

Claro que a desobediência civil funciona melhor em grupo —muita gente até diz que não ocorre em atos individuais. Mas o fulcro da desobediência civil reside na noção de liberdade, e esta, por sua vez, é, no âmbito social, sintetizada através de outra noção, cidadania, ou seja, pela possibilidade de uso desse direito. E a cidadania é preponderantemente um componente individual (ainda que o resultado de seu exercício remeta para o social). Como argumenta Norberto Bobbio, em "Era dos Direitos", a democracia no sentido moderno da palavra, "deve ser corretamente definida não como o faziam os antigos, isto é, como o ‘poder do povo’, e sim como o poder dos indivíduos tomados um a um..."

Na desobediência civil é possível ouvir o eco das massas, mediado pelo dos indivíduos-cidadãos: certamente não será o eco das maiorias, embora nada impeça de sê-lo —mas aí já terá outro nome. De uma ou outra forma, estarão os desobedientes sempre muito distanciados do silêncio (em todos os sentidos), provocando, então, uma fissura nas massas. A tese de Baudrillard, como o próprio aumento de intensidade dos movimentos de desobediência, podem ter a ver (o primeiro com certeza) com o turn linguístico-pragmático da filosofia que operou-se após Wittgenstein, através de Austin, Heiddegger e Habermas, e que resultou num "pluralismo das razões" pelo reconhecimento da intersubjetividade.

Mas o texto clássico da desobediência é de Henry David Thoreau, norte-americano que se manifestou contrário à guerra ao México, que resultou na anexação do Texas em 1835. Ele a entendia como um abuso, uma perversão, do Estado. Como forma de contestação, sonegou imposto eleitoral. Foi preso, mas escreveu o texto que o tornou famoso. Thoreau inicia "A Desobediência Civil" com a tese do laissez-faire: "aceito com entusiasmo o lema 'o melhor governo é o que menos governa'; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente". Logo em seguida deriva para algo próximo a Bakunin: "levado às últimas consequências, este lema significa o seguinte, no que também creio: 'o melhor governo é o que não governa de modo algum'; e,
quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão".

Eis o problema, segundo Thoreau: "Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até à sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?" A resposta é positiva, é possível transgredi-las imediatamente, mas de forma pacífica: "Se no ano corrente mil homens não pagassem os seus impostos, isso não seria uma iniciativa tão violenta e sanguinária quanto o próprio pagamento, pois neste caso o Estado fica capacitado para cometer violências e para derramar o sangue dos inocentes. Esta é, na verdade, a definição de uma revolução pacífica, se é que é possível uma coisa dessas."

Em 20 de junho de 2001, cerca de 200.000 manifestantes (pelos cálculos destes) estavam nas ruas de Gênova, Itália, para protestar contra a política econômica mundial, bem às vésperas de encontro do G-8, o grupo das oito nações mais industrializadas do mundo, mais a Rússia. No confronto, o jovem Carlo Giuliani, 23, levantou um extintor ameaçando atirá-lo em um dos jipes da polícia. Um policial de 21 anos não hesitou em atirar na cabeça de Giuliani —e o jipe ainda passou duas vezes por sobre o corpo do jovem.

Manifestações como essas têm perturbado, e algumas vezes até mesmo impedido, reuniões da Organização
Mundial do Comércio, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, resultando em autênticas batalhas nas ruas. Não se trata de baderna ou ingênua utopia: são desobedientes não somente em decorrência dos métodos, mas na medida em que buscam a reforma a partir da deslegitimação de um sistema que, entendem, impede a participação dos menos favorecidos: a vertente neoliberal do capitalismo.

Até os brasileiros, pouco afeitos a atos de desobediência contra as normas e regulamentos do Estado, se levantam em pleno 2008: dos bairros de alta classe média da zona sul aos empobrecidos bairros da zona norte, ganha corpo o movimento no Rio de Janeiro de boicote ao pagamento do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) em protesto contra a gestão do prefeito Cesar Maia (DEM). Com a adesão de mais e mais gente, surgiu a proposta de só pagar o imposto em novembro, depois de passada a eleição, para que a receita não seja usada em obras eleitoreiras.

A ação desobediente é ordinariamente coletiva: quanto maior o número de participantes, maior a segurança individual, como, a princípio, maior a legitimidade, talvez maior a eficiência, se não resultar em descontrole. Apesar da discordância por parte de alguns pensadores, Bobbio e Hannah Arendt entre outros, o fato é que nada impede que um ato individual e isolado possa ser considerado como de resistência. Um dos princípios da resistência civil é justamente o de elevar o cidadão ao patamar de partícipe das transformações; não seria o próprio movimento quem deturparia essa razão fundamental. O que se depreende, por exemplo, do texto de Thoreau, é que sua intenção era firme no sentido de provocar mudanças, não somente por razões de consciência, mas sobretudo para fazer valer os direitos que entendia ser proprietário enquanto cidadão.

É um ato ocasional e limitado: tem um determinado objetivo e cessa com sua obtenção. Nesse sentido, as greves cessam com reconhecimento dos direitos dos trabalhadores —e mesmo sem. É importante notar que, apesar de ocasional o ato, isto não significa que não possa partir de um movimento ou de uma consciência mais ampla. A desobediência é pública e transparente, não tendo feições conspirativas. Em algumas vezes os participantes dão a conhecer não somente suas razões e intenções, como também os meios que serão empregados. Uma vez que a desobediência decorre quando há divergência quanto ao comportamento do Estado, ou melhor, com suas soluções, sua forma de encaminhamento do problema, há que se entender que é, igualmente, um ato político.

Os desobedientes reconhecem a ilicitude do ato e se põe à mercê do Estado para a sanção, mesmo porque acreditam que isso reafirma a confiança na Justiça. Portanto, acatam o ordenamento jurídico, no sentido de entendê-lo por necessário. Não querem removê-lo, mas reformá-lo: é uma visão construtiva. Assim, os ativistas devem exercitar esse instrumento com riscos e perigos para quem o reivindica. Isto significa que, o recurso à desobediência civil, por resultar uma fratura da lei, somente irá ocorrer após esgotadas as vias de negociação, tanto quanto devidamente instruídos e preparados os ativistas: é uma forma de legitimar o comportamento via a demonstrada inoperância dos institutos legais. Trata-se de um pleito de reconsideração, no interesse da sociedade e da justiça, como pode-se ver nos movimentos pacifistas, ecológicos e nos protestos pelo desarmamento nuclear.

A desobediência civil pretende, a princípio, ser um movimento não-violento. Todavia, na prática, isto nem sempre ocorre. Thoreau e Martin Luther King reconheceram a necessidade da força em determinas situações. Porém, a bem da verdade, é justamente o uso da violência que tem dado a possibilidade aos poderes institucionalizados da criminalizar alguns movimentos, taxando os desobedientes de guerrilheiros e terroristas, buscando quebrar o apoio popular.

Em todo caso, o apelo à opinião pública é fundamental e característico, tanto para os fins de informar a sociedade sobre as questões levantadas, mas até mesmo para dar conta da existência de descontentes. e para mobilizar os demais cidadãos, angariando-os para a causa. Ademais, essa mobilização da opinião pública causa um despertar que até mesmo vai além dos interesses específicos dos desobedientes, no sentido em que redescobrem os cidadãos a vontade de participar, tanto quanto dão conta dessa necessidade em prol da democracia e da sociedade em geral.

Cabe ressalvar que a desobediência civil não se confunde com a objeção de consciência, que remete a razões morais ou religiosas, como por exemplo, a negativa a prestar o serviço militar. Também não é o mesmo que a afirmação da minoria, que são medidas contra a discriminação, caso de cotas para os negros —embora a afirmação da minoria possa a ser conseqüência de um pleito através da desobediência. Segundo Hannah Arendt, idéia de liberdade se prende à idéia de ação: "os homens são livres enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa".

Neste sentido, liberdade e política são o mesmo: "é este o âmbito em que a liberdade constitui uma realidade concreta, tangível em palavras que podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que são comentados, relembrados e transformados em estórias, antes de incorporarem por fim ao grande livro da história humana." Mas isso não significa, como, aliás, salienta Arendt, em reconhecer que essa coincidência entre liberdade e política esteja em nossa atual experiência política.

Ademais, liberdade é resistência lúcida. Aqui chegamos ao problema principal: traçar a linha demarcatória entre as esferas da livre autodeterminação do indivíduo e da atuação do Estado ou, para usarmos a expressão de Karl Manheim, entre a liberdade e a planificação. Neste sentido a promoção de certas liberdades a verdadeiros direitos subjetivos dos cidadãos, oponíveis não só aos particulares como ao próprio Estado e seus agentes, contra pessoas ou organizações detentoras de poder público", o que se fez e faz através das conhecidas declarações, tal como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esta última assim dispõe em seu art. 4: "a liberdade de cada um só tem limite na dos demais e só a lei determina esses limites".

Daí o porquê da obediência à lei ter alto grau de vinculação com a legitimidade do governante: ou é legítimo e será ouvido através da lei em função deste requisito, ou então, seu poder residirá na força e na violência. Porém, mesmo na democracia é preciso identificação entre a legalidade e legitimidade para que haja obediência voluntária - porque a autoridade deve atuar sob a lei e a lei só é justa quando resultante do consenso público.
Já se foi o tempo, no qual, como diz Bobbio, era possível crer que "o sistema político fosse ou auto-suficiente (e, portanto, gozasse de certa independência em face do sistema social global), ou fosse ele mesmo o sistema dominante (e, portanto, que bastasse buscar remédios aptos a controlar o sistema político para controlar, com isso, o sistema de poder da sociedade como um todo). Mas, de qualquer forma, é notório que as reformas sempre foram conseguidas devido à pressão das massas: a própria reforma agrária brasileira é exemplo disso".


Talvez fosse interessante a essa altura perguntar porque sempre foi necessário o levante das massas. Talvez porque "o sinal dado pela indisciplina em massa, que enfrenta o delito e a loucura (marginalidade), assusta e pressiona muito mais os que estão no poder do que outras formas de manifestação, por ser já um rompimento com a disciplina do sistema, antecipando a imagem de um rompimento total".

Em resumo, nesta visão o que põe o sistema a negociar seria um só fator: o receio do descontrole e não o respeito ao cidadão. É porque ordem e sistema conjugam e se reproduzem em todas as instâncias e porque, em suas estratégias, fabricam liberdades e moldam normalidades —porque o sistema pleiteia para si, então, uma espécie de soberania da ordem ou da desordem normalizada. Se o sistema receia o descontrole é também porque reconhece uma certa virtualidade do comportamento das massas, ainda que a assuma como periculosidade.

Cabe, então, salvaguardar o espaço de exercício deste instrumento da cidadania, como de proteção e renovação da democracia e de aperfeiçoamento do processo social. Isso se dará, entre outras formas, caso se propicie a abertura dos canais representativos, para a participação e influência popular nas decisões dos organismos sociais e políticos, e se intervenha para garantir o próprio processo de formação da opinião pública.

Enfim, a desobediência civil e seu contrário, o silêncio (abstenção) das massas, revelam em comum uma crise nas fronteiras das liberdades e no sistema representativo —que pode, quem sabe?, sinalizar para até mesmo a recusa de representação. No frontispício de "A Náusea", Jean-Paul Sartre faz —ironia erudita menção à uma citação de Céline em "L’Eglise": "é um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo." No Brasil, vivemos hoje um momento especial de falência democrática e estatal, materializada pelas lambanças na saúde pública, na segurança, nas instituições (veja-se caso do Senador Federal), no excesso de impostos, na corrupção, nos partidos políticos etc. etc.

Como cidadãos, precisamos fazer mais e mais. Como diz Thoreau, “não é suficiente ser deixado em paz por um governo que pratica a corrupção sistemática e cobra impostos para fazer mal a seu próprio povo!"

Campo Grande MS, segunda-feira, 21 de janeiro/2008

Um comentário:

Anônimo disse...

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