sexta-feira, 26 de maio de 2017

Sobre a utilidade da corrupção

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No 146º dia deste ano as pessoas sentiram surpresas com a defesa do ex-governador André Puccinelli, feita por grande número de pessoas nas redes socais, inclusive jornalistas. Alguns textos são rigorosamente apaixonados, como que redigido por áulicos. Como se sabe, o médico e ex-governador foi detido há alguns dias pelas autoridades policiais sob a acusação de corrupção.

Cognominado Coronel da Toscana, por conta da região italiana em que nasceu e do seu estilo capo de governar, Puccinelli obviamente afirma que tudo é mentira dos seus muitos desafetos. Seu antecessor Zeca do PT, eg, afirma —em artigo publicado em fevereiro/15— que “até o momento, três ‘legados’ de André Puccinelli consumiram quase R$ 450 milhões: a verdadeira farra da publicidade (R$ 130 milhões), o faraônico Aquário do Pantanal (R$ 240 milhões) e o desfalque dos consignados (R$ 50 milhões). Para que tenhamos uma noção da magnitude desses valores, o mesmo corresponde a um mês de toda a arrecadação estadual de ICMS”.

Parece não haver provas de que o dr. Puccinelli é corrupto de fato, mas o sr. Zeca do PT afirma, como se leu acima, que sim. O petista, porém, lamenta a decisão da Justiça de colocar uma tornozeleira eletrônica no peemedebista, dispositivo usado comumente por prisioneiros que cumprem prisão domiciliar ou que estão no regime semi-aberto. “Não tenho razão —diz Zeca— para comemorar esse tipo de coisa. Eu faço luta política, não pessoal”*. Apesar do dispositivo no doutor,
Zeca ainda acha que ele é candidato forte para as eleições de 2018 —e o comparou, em prestígio, à figura do ex-presidente Lula da Silva.

É possível que muitos dos que defendem o ex-governador e outros políticos sejam favoráveis à corrupção, principalmente aqueles que apoiam o preceito do “rouba mas faz”. Isso pode parecer absurdo, mas há muita gente que aprova a corrupção sem ressalvas. Há inclusive analistas políticos sustentam que a corrupção pode desempenhar um papel útil nos países em desenvolvimento. Parece cínico —e é—, mas é real.

Este argumento possui um cinismo latente valor de choque que se iguala ao de que o nível ótimo da corrupção não é zero. Mais: não se trata apenas de que combater a corrupção pode ser tão caro a ponto de não valer a pena, mas que a corrupção propriamente dita pode criar benefícios econômicos, políticos ou administrativos.

Em seu livro “A Corrupção Sob Controle”, o economista norte-americano Robert Klitgaard, um especialista internacional em corrupção, demonstra que é possível mostrar três categorias de argumentos no sentido da corrupção poder, ocasionalmente, ser benéfica do ponto de vista social. Pode-se imaginar um argumento do economista, argumento do cientista político e argumento do gestor.

Eis o argumento do economista: os pagamentos por corrupção introduzem um tipo de mecanismo de mercado. Em um sistema em que bens e serviços são alocados por filas, política, seleção aleatória ou "mérito", a corrupção pode, em vez disso, alocar os bens segundo a disposição e a capacidade de pagar. A corrupção, por conseguinte, pode colocar bens e serviços nas mãos das pessoas que mais os valorizam, que os podem usar de modo mais eficaz. Em certo sentido, portanto, depois do ato de corrupção esses bens e serviços são distribuídos de modo mais "eficiente" na acepção econômica.

O professor de economia comercial Nathaniel Leff assim resume essa questão: “a corrupção pode introduzir um elemento de competição no que, do contrário, seria um negócio comodamente monopolista (...). Ao mesmo tempo a propensão para o investimento e a inovação econômica pode ser maior fora do governo do que dentro dele (...). Como o pagamento dos mais altos subornos é um dos principais critérios de alocação, a capacidade de aumentar a receita, seja tirando das reservas ou das operações correntes, é incentivada. A longo prazo, ambas as fontes dependem fortemente da eficiência na produção. Daí uma tendência para que a concorrência e a eficiência sejam traduzidas no sistema.

 A fala do economista tem dois aspectos. Primeiro, uma predição: as forças do mercado são difíceis de evitar. Quando o mercado não está acostumado a distribuir bens e serviços, a corrupção se insinuará em uma espécie de mercado ilícito paralelo. Em segundo lugar, uma avaliação: quando ocorre a corrupção, esta pode conduzir a uma alocação de bens segundo a disposição e a capacidade de pagar. Essa evolução, por sua vez, pode ser economicamente eficiente —talvez, portanto, socialmente útil.

Já o argumento do cientista político tem este sentido: pagamentos, nomeações e políticas motivadas pela corrupção podem trazer benefícios políticos. Os políticos podem utilizar a corrupção para favorecer a integração de várias comunidades, tribos, estamentos, regiões ou partidos, o que, por sua vez, pode levar à harmonia política em face da fragmentação da autoridade, da desunião e da hostilidade. Analiticamente, pode-se classificar certos gêneros de corrupção ao lado de acordos do tipo “ajuda teu irmão que ele te ajudará ou é dando que se recebe” e quotas preferenciais para diferentes regiões, grupos étnicos ou partidos. Embora tais artifícios em geral distribuam benefícios públicos de formas que, estritamente falando, se opõem à alocação por "mérito " ou "beneficio social máximo", elas podem acarretar benefícios políticos. Bem diferentes dos evidentes benefícios para o político politicamente corrupto, pois a sociedade como um todo pode ficar “melhor" devido à corrupção.

Cientistas políticos às vezes citam a experiência dos Estados Unidos, onde a corrupção auxiliou as "máquinas políticas" das cidades a fornecerem não apenas o voto, mas também os serviços públicos, e onde essa corrupção foi afinal suplantada pelo "bom governo". O surto de corrupção nos países em desenvolvimento, hipoteticamente, pode ter benefícios semelhantes e um prognóstico analogamente benigno. A corrupção por vezes é encarada como um mecanismo de "participação política” e influencia, particularmente minorias étnicas e empresas estrangeiras: "na maior parte dos países subdesenvolvidos, os grupos de interesse são fracos e os partidos políticos raramente permitem a participação de elementos alheios às facções rivais.

Em consequência, o suborno pode ser a única instituição que permite a outros interesses conseguir articular e ter representação no processo político. Daí, a despeito dos aparentes custos sociais, a corrupção poder trazer importantes benefícios políticos.

Finalmente, o argumento do gestor: a corrupção pode ter utilidades dentro de uma organização. Se as regras burocráticas a estão constrangendo, a organização pode às vezes beneficiar-se do desdobramento corrupto das regras pelos empregados. Uma dose limitada de roubos, desfalques, falsos relatórios de gastos, devoluções, "taxas de urgência”, e assim por diante, pode ser tacitamente admitida pela administração superior, pois controlar essas atividades ilícitas podem ser, a longo prazo, um sucedâneo para salários mais elevados. Um fundo tipo "caixinha" talvez funcione em uma organização como um fundo de despesas eventuais que a administração superior possa alocar, de modo flexível, mas ilícito, para favorecer os objetivos da própria organização.

Esses três "argumentos" têm alguns aspectos em comum. Primeiro, referem-se aos benefícios decorrentes de determinados atos de corrupção, não da corrupção sistemática embutida em muitas ou na maioria das decisões. Em segundo lugar, os supostos benefícios dependem da hipótese de que a corrupção transgride uma orientação econômica errada ou ineficiente, supera as limitações de um sistema político imperfeito ou contorna as deficiências das regras organizacionais. Em suma, se o sistema vigente é ruim, então a corrupção pode ser benéfica. Nossa equação anterior entre o interesse do outorgante e o interesse público pode ser, infelizmente, demasiadamente otimista.

Segundo o já mencionado Leff assinalou, “a crítica da corrupção burocrática muitas vezes parece ter em vista uma situação em que o governo e a administração pública estão trabalhando ativa e inteligentemente para promover o desenvolvimento econômico, só para serem frustrados pelos esforços dos concussionários. Uma vez que se discuta a validade dessa interpretação, os efeitos da corrupção também têm ser reavaliados. Tal é o caso quando o governo consiste em uma elite tradicional indiferente, senão hostil, ao desenvolvimento, ou em um grupo revolucionário de intelectuais e políticos primordialmente interessados em seus próprios objetivos.

Nas palavras do cientista político Samuel Huntington: "Em função do crescimento econômico, a única coisa pior que uma sociedade com uma burocracia rígida, ultracentralizada e desonesta é aquela com uma burocracia rígida, ultracentralizada e honesta.

Evidentemente, as políticas e normas contornadas pela corrupção nem sempre são míopes e extraviadas. A interferência e os controles econômicos deplorados pelos economistas podem ser implementados por motivos de eficiência econômica. Os governos com frequência (embora nem sempre) intervêm na economia exatamente em circunstâncias em que os mercados não são confiáveis para distribuir bens e serviços devido a exterioridades, indivisibilidades, bens coletivos e outras falhas do mercado.

Em casos assim, a corrupção talvez simplesmente reintroduza as deficiências do mercado, prejudicando a economia. Conclusão análoga aplica-se à transgressão corrupta de mecanismos políticos ou normas organizacionais aceitas. O resultado pode ser nocivo à estabilidade e à integração políticas, bem como à eficiência da organização.

A corrupção pode ajudar por um lado e prejudicar por outros. Contornar regras públicas por meio da corrupção, por exemplo, pode conduzir a um tipo de eficiência econômica, mas à custa dos outros objetivos visados pelas regras em primeiro lugar. Afirmações genéricas sobre a utilidade ou nocividade da "corrupção" não ajudam a avaliar os efeitos de casos particulares com os quais se possa deparar. Por outro lado, dado o predomínio, na cúpula política do Brasil, de apologistas da corrupção, talvez seja melhor assumir que o país é um cleptocracia empedernida. Ou uma pulhocracia desvairada.

(*) https://goo.gl/M9NrMd



Luca Maribondo

Campo Grande | MS Brasil








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