Nunca
me refiro a um grupo ––qualquer grupo–– de pessoas como galera. Explico o por
quê: quem gosta e estuda as palavras conhece bem o uso político que se faz
delas. Desde sempre, esta é uma prática utilizada por governantes, políticos e
seus sectários, líderes religiosos, jornalistas e outros detentores do poder. O
uso político das palavras joga sabiamente com sua polissemia, de modo que elas
têm como verdade o fato de terem diversas verdades. Um exemplo disso é o uso
errôneo do vocábulo golpe, pra denominar o impeachment da presidente
interrompida Dilma Rousseff.
Por
isso, com frequência, grupos diferentes podem vincular seus interesses a este
ou aquele sentido possível das palavras. E as lutas a propósito das palavras
vão consistir na tentativa de alterar a hierarquia comum dos sentidos para
constituir como significado fundamental um conceito até então secundário, ou
melhor, subentendido, operando assim uma revolução simbólica que pode estar na
origem de revoluções políticas.
É
preciso compreender que o discurso, o uso político das palavras, concorre para
transformar a consciência humana e livrá-la das mitificações e mistificações,
abrindo um campo enorme para a ação dos homens, mediante o uso da razão; mas
uma razão despida de sua conotação instrumental e utilitária, uma razão que
busca o reencantamento do mundo, um sentido maior do qual somos órfãos, e do
qual dependemos visceralmente; uma razão que busca resgatar os valores
universais de justiça e paz, e que busca uma nova ética, fundada em bases
humanistas e desatrelada do relativismo contemporâneo, desintegrador dos laços
sociais.
Nem
sempre é assim, claro, muito pelo contrário. Mas deveria ser assim.
Um
exemplo clássico de uso político da palavra é o termo pagão. Em Roma, no início
do Cristianismo, pagánus era o homem
da aldeia, aldeão; cidadão que não era soldado. Mas para desqualificar aqueles
que não aderiam à nova religião, os cristãos passaram a adjetivar de pagano como aquele que não foi batizado
e era adepto de qualquer religião que não adota o batismo ou adota o
politeísmo. Ou seja, pagão era o herege.
O
mesmo aconteceria mais tarde com as palavras direita e esquerda, no sentido de
ideologia política. A designação de direita e esquerda dada a um e outro
antagonista político-social foi mera casualidade topológica. Esquerda é um
termo político muito inadequado, embora consagrado em várias línguas, tanto
quanto direita. Marx e Engels não usaram a distinção, pois se referiam direta e
cientificamente às classes sociais em luta ou a movimento, com qualificação ou
sem ela. Lênin só utilizou as palavras esquerda e esquerdismo de maneira
irônica.
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Galera é a mãe... |
Assim,
os vocábulos esquerda, centro e direita dissimulam e confundem, porque não
refletem claramente a base real de classes e subclasses sociais em que se
articula a disputa política, assim como dão margem a entendimentos equivocados
devido à sua polissemia. Coisa direita, comportamento direito, é certo,
correto, justo, elogiável etc. Conduta esquerda é conduta estranha, canhestra,
duvidosa etc. E é bom ter a referência do que se refere a essas posições:
direita é destra, esquerda é sinistra —mas a ignorância faz com que a maioria
não saiba disso. E sinistra significa perniciosa, trágica, calamitosa.
Ademais,
os crentes acham piamente que o diabo existe e é canhoto e tem a cor das
esquerdas, o vermelho… Isto tem fundamento numa antiquíssima superstição
arraigada nas línguas indo-europeias. A distinção entre esquerda e direita dá
margem às tentativas frustrantes e enganosas de taxonomia política de quem ou
do que pode ser considerado de direita ou de esquerda. Substitui a análise do
caso concreto.
Isso
nos leva a outro exemplo: sinistro, que antes nada significava além de canhoto,
isto é, quem usa preferencialmente a mão esquerda, mas passou a ser quem
pressagia acontecimentos infaustos; agourento, funesto, que é pernicioso; mau.
Sinistro era simplesmente o contrário de destro… Mas a crença popular dizia que
ser canhoto era ter parte com o Diabo. Muitas outras palavras ganharam novas
conotações além da original por mero uso político, além das já mencionadas:
analfabeto, burro, discriminação, preconceito, paranoia, ambiente, sustentável,
feminismo, corrupção e tantas outras.
Um
dos mais recentes exemplos do uso político da palavra é o vocábulo homofobia e
seus derivados. O termo é um neologismo criado pelo psicólogo norte-americano
George Weinberg, em 1971, na verdade um acrônimo resultante da união da palavra
grega phobos (fobia), com o prefixo
homo (igual, semelhante), como remissão à palavra homossexual.
Phobos
é medo em geral. Fobia é o medo irracional (instintivo) de algo. Porém, fobia
neste termo é empregado não só como medo geral (irracional ou não), mas também
como aversão ou repulsa em geral, qualquer que seja o motivo. Como qualquer outra
fobia, é patológica. É doença. Etimologicamente, o termo mais aceitável para a
ideia expressa seria homofilofóbico, que é medo de quem gosta do igual. Mas
quem iria usar essa palavra tão escalafobética?
Assim,
ficou homofobia mesmo, que é largamente usada pelos gays do mundo inteiro para
marcar quem não aprecia o homossexualismo e os homossexuais, com ou sem razão,
como se isso fosse crime —como criminalizar uma doença? O jogo político se
tornou tão cruento, que hoje é difícil alguém falar abertamente contra o
homossexualismo. Se o fizer, logo será taxado de homofóbico e execrado em praça
pública.
Boa
parte da culpa por esse uso é dos jornalistas, o que é um pecado mortal, pois
como diz Alberto Dines, “jornalistas não podem oferecer os seus leitores conceitos
enganosos. Jornalistas não deveriam sequestrar o sentido das palavras”. Vão
acabar provocando logofobia nas pessoas —e aí estarão mortos como profissão.
Outro
termo canhestro é galera. A palavra denominava, na antiguidade, os escravos que
remavam pra mover nas águas as galés ancestrais. Ou seja, os remadores eram o
substrato da espécie humana. Hoje é uma forma das classes superiores
subestimarem os mais humildes. Sempre que alguém está chamando outrem de galera
o está inferiorizando, ainda que inconscientemente. Ah!… Portanto, não se
refira a mim como galera. Galera é a sua turma.
Há
uma frase do filósofo Ludwig Wittgenstein: "Os limites da minha linguagem
são também os limites do meu pensamento”. Simplificando: o bem pensar quase que
se confunde com a competência de bem usar as palavras. Traduzindo pra uma
linguagem mais moderna, significa que pensamos com as palavras; e quem não sabe
usá-las com acerto não sabe pensar.
Luca Maribondo
lucamaribondo@uol.com.br
Campo Grande | MS | Brasil
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