sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Cada táuba que caía

Estava eu, em Bali, na véspera do Natal, ouvindo uma dessas rádios da Internet quando, de repente surge um som muito conhecido: “Saudosa Maloca”, do Adoniram Barbosa. Dá licença de contar. Não sei quem cantava, mas era uma mulher e não brasileira, porque logo percebi um sotaque diferente. Também era um arranjo pouco comum, mais no estilo da bossa nova e uma banda pequena e muito afinada, coisa muito requintada para uma canção tão pé-no-chão e popular, como quase sempre foram as composições do Adoniram.

“Saudosa Maloca”
tem um significado muito forte pra mim. Quando eu era pequeno, a canção estava presente em muitas ocasiões. Sempre gostei dos Demônios da Garoa, porque meu pai era um aficcionado no conjunto. “Trem das Onze”, eu sabia cantarolar desde criança. Mas não, não podia, não concordava em ouvir “Saudosa Maloca”. Era começar os primeiros acordes pra eu entrar numa melancolia profunda. Ficava com os olhos marejados, escutando a história de “eu, Mato Grosso e o Joca”, lutando pela maloca própria. E eu olhava para os adultos, cantando, se divertindo, como se fosse algo normal e que merecia ser cantado. E eu nem sabia o que era uma maloca! Quando ouvia as palavras Mato Grosso me entristecia. Eu nasci em Mato Grosso e não conhecia minha terra. Aliás, sequer sabia onde ficava.

Que coisa bárbara, pensava eu. Como é que alguém podia cantar —num botequim, numa festa ou churrasco qualquer—, uma história tão triste? Me pesava muito sentir as pessoas felizes com a desgraça alheia. Minha vontade era brigar com “os hômi com as ferramentas” que destruiram tudo. Tinha que ser impedida essa demolição cruel. Apenas três amigos simples e miseráveis que tinham construído seu casebre com o suor do próprio rosto, como se pode jogá-los na rua? Os versos “E fumos pro meio da rua/Apreciá a demolição” eram especialmente dolorosos. Muita sacanagem.

Criança ainda, eu ouvia e chorava. Chorava pensando nos três que perdiam as suas casas, e que tinham que morar no relento, e não achava justa aquela resignação deles, esperando o frio conforme o cobertor que Deus desse. Eu não conseguia simplesmente ouvir a canção. Eu a sentia, eu a sofria, era impossível ficar passivo, como os adultos. As pessoas, principalmente os adultos, não entendiam minhas reações. Alguns riam. Outros diziam “que bobo”! Outros ainda achavam bonito.

Sim. E era, porque agora consigo ouvir a melodia sem chorar. Talvez seja uma pena. Conforme vamos amadurecendo, aprendemos a manter distância da realidade, das pessoas, dos sentimentos, ainda mais se forem os sentimentos alheios. Mais velhos, podemos cantar canções catastróficas e achá-las simplesmente maravilhosas. A vida nos obriga a ser blasée, a ver o mundo através de lentes cor-de-rosa. Não existem mais cores, não há nuances, não há espaço para sentimentalismos. Passe por cima, e pronto. Ouça a canção, espere pela próxima. A lágrima deve ser contida, retida, e se ocorrer o escândalo de escorrer pela face, que a esconda ou finja que é um cisco.

Não seria normal, hoje, com 67 anos, que eu chorasse ao ouvir “Saudosa Maloca” ou outra canção qualquer das tantas que compõem a trilha sonora da minha vida. Posso ficar emocionado com a história de três amigos humildes porque perderam sua casinha. Se eles não têm dinheiro, têm mais que trabalhar, não podem sair por aí invadindo propriedade alheia. Aliás, nem sei porque estou discutindo isto? É apenas uma canção, é poesia, é ficção, não devo perder meu tempo com isso.

Há coisas mais importantes pra fazer. Por que me preocupar com isso? Não devo pensar nos três amigos cruelmente despejados. O que estou fazendo? Pare! Seque  já isso aí. Chorar por nada, que bobagem! O tempo para sentimentos já acabou. Saudosa inocência, inocência perdida. E ficava pensando, “Que tristeza que nóis sentia/Cada táuba que caía/Doía no coração”.

Luca MaribondoUmalas l Bali26/dezembro/2014
LucaMaribondo@gmail.com

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