quarta-feira, 29 de outubro de 2014

_Sorria. Amanhã será pior

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Minha implicância com as máquinas de votar brasileiras começou logo no seu lançamento, nas eleições de 1996. E minha hostilidade começou com a denominação da maquineta: urna eletrônica. Afinal, urna é um recipiente com tampa pra botar cinzas dos defuntos; e, portanto, sinônimo de caixão de defuntos e urna funerária. No Brasil é também recipiente para votos, tíquetes de concursos e sorteios etc. Máquina de votar seria mais correto e fácil de compreender. Ou então inventar um neologismo pra maquineta, tipo autovotador ou votador automático ou ainda ue (pronuncia-se “ué!”).

O Brasil foi o primeiro país do mundo a adotar uma votação totalmente informatizada. Quer dizer, em matéria de eleição o mundo curva-se ao país. Segundo as autoridades, a urna eletrônica evita a maioria das fraudes, principalmente aquelas mais tradicionais, feitas com papel e caneta. Entretanto, a pretexto de reduzir custos e evitar questionamentos judiciais, foram desprezados procedimentos de garantia dos direitos do eleitor, deixando abertas brechas para tipos de fraude mais modernos.

Até porque a urna eletrônica é um microcomputador de uso específico para eleições, com características especiais para votação: resistente, de pequenas dimensões, leve, com autonomia de energia e com recursos de segurança. Dois terminais compõem a urna eletrônica: o terminal do mesário, onde o eleitor é identificado e autorizado a votar, e o terminal do eleitor, onde é registrado numericamente o voto. Como é um computador, a ue está sujeita a todos os problemas comuns aos computadores

Quem usa regularmente os computadores sabe que eles podem ficar lentos, travar, pegam vírus, spywares e cavalos de Tróia, são vulneráveis a uma porrada de programas maliciosos, desligam ou reiniciam sozinhos, têm erros de “tela azul” e uma série de outros problemas mais ou menos sérios.

Além disso, nas urnas eletrônicas as falhas que vêm sendo apontadas pelos especialistas que as estudam são basicamente três: 1) falta de comprovação física do voto, para que se possa ter certeza de que o voto exibido para o eleitor é o mesmo gravado na memória da máquina; 2) impossibilidade de auditoria dos programas da urna eletrônica, pois o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e seus congêneres estaduais, os TREs, se nega a apresentar alguns dos programas; 3) possibilidade de violação sistemática dos votos e do segredo eleitoral, devido à digitação do título do eleitor antes de liberar a urna para a votação.

Parlamentares tentaram impor normais para que cada voto fosse impresso para conferência visual pelo eleitor (sem manuseio), a fim de possibilitar auditoria, além de eliminar a perigosa digitação do título de eleitor. Em 2000, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ingressou com ações para garantir o direito dos partidos a conhecer o conteúdo dos programas da urna —nenhuma proposta prosperou.

O sistema brasileiro foi testado no exterior, mas poucos países se convenceram de que o sistema é funcional e confiável. Na Ianquelância, o Estado da Califórnia —terra da informática— proibiu o uso das máquinas de votação eletrônica fabricadas pela empresa Diebold, a mesma que fornece máquinas semelhantes para o Brasil, que, aliás, volta e meia recebe multas pesadíssimas das autoridades norte-americanas por conta da corrupção.

Parlamentares, especialistas em computação, organizações voltadas contra fraudes eleitorais, nos Estados Unidos, iniciaram campanha nacional contra a utilização das máquinas. Existem perguntas que não foram respondidas até hoje pelos defensores incondicionais do sistema adotado no Brasil. Por exemplo: por quê não o voto impresso, como forma de garantia do eleitor? Como está, a máquina não permite recontagem, pois assumiu contornos de infalibilidade.

O ministro presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) da época, Nelson Jobim, indicado por FHC, figura controvertida e várias vezes apontado como responsável por decisões no mínimo contraditórias daquele Corte, foi o principal defensor da perfeição do sistema adotado a partir de seu trabalho como presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Seu argumento era simples: “todos envolvidos no desenvolvimento da urna são honestos. Se não dá para confiar neles é melhor acabar com a urna eletrônica”. Perfeito.

Jobim trabalhou escancara e descaradamente junto ao Congresso, para evitar que projetos de lei que buscavam dar transparência ao sistema fossem aprovados ou adotados. A confiança absoluta na tecnologia que, nesse caso, é também um atentado à democracia, por eliminar toda e qualquer forma de controle. De transparência. E a fraude no Brasil em determinados momentos assume contornos inacreditáveis.

A máquina a serviço das classes dominantes, atingindo o ápice ao subordinar o processo eleitoral a perfeição do controle exercido sobre as classes dominadas, tudo com roupa bonita e passadinha de democracia.Uma história da carochinha contada no dia a dia de cada um pela estrutura de comunicação do poder, os principais veículos aqui e em qualquer lugar, mas onde as fadas são bruxas disfarçadas. Os homens do poder sabem que a máquina é burra. Vai sempre fazer o que eles mandarem.

As questões e dúvidas levantadas nos Estados Unidos poderiam ser levantadas no Brasil. Um amplo debate público. Há setores organizados na luta contra o modelo de voto eletrônico adotado aqui e que, várias vezes, demoliram os argumentos de Jobim e dos defensores das máquinas.Têm buscado de forma quase heróica trazer a questão a público e suscitar esse debate. Alguns, em determinados momentos se viram ameaçados de prisão por terem contestado o caráter absoluto que se conferiu ao voto eletrônico.Os meios de comunicação, falo dos maiores, braços do poder, não tocam no assunto. Vez por outra, mas via de regra de maneira ufanística, chegando ao ridículo de dizer que exportamos democracia.

Ricardo Lewandowski, atual presidente do TSE, comporta-se com a mesma arrogância dos seus antecessores. Também pra ele as urnas são perfeitas. E se alguém reclamar se arrisca a ser processado e a condenação é garantida antecipadamente. Que o diga o ex-deputado João Lyra, que foi processado até por litigância de má-fé (que ocorre quando uma das partes de um processo litiga intencionalmente com deslealdade e/ou corrupção). Mas a desconfiança é grande, embora o cidadão brasileira acabe agindo sempre como torcedor: se o prejudicado é o adversário, ótimo; se o prejudicado é ele mesmo, considera-se lesado.

A máquina de votar é a prova pronta e acabada da constatação de que alguém, de alguma forma, manda em outrem, normalmente uma minoria, as classes dominantes através dos políticos, mandando na maioria, os cidadãos. Para as ideologias políticas de todos os matizes, se algo é bom para a sociedade, mas está contra elas, é péssimo;  se algo é ruim para a sociedade, mas está a favor delas, é ótimo. Isso é o óbvio. A máquina é só a ponta final, o toque refinado dos donos para manter a farsa e vender a idéia que esse sistema de votação representa progresso, uma importante conquista tecnológica.

E ai de quem tocar no assunto com alguma autoridade da Justiça Eleitoral, seja um funcionário graduado, seja um juiz, desembargador ou ministro: vai ser execrado por todo o resto da sua existência. Sempre se usa um argumento desesperado ou a pura arrogância, mas que têm sido utilizados sempre que se questiona a segurança do dispositivo. Como disse Nelson Jobim, “todos envolvidos no desenvolvimento da urna são honestos”. Mas alguém pode imaginar um grupo de pessoas em que todas sejam plenamente acima de qualquer suspeita? Nesse caso, a justiça pode ser cega, mas se você marcar bobeira ela mede a justeza com uma balança desregulada e ainda dá com a bengala branca no seu cocoruto.

É por isso tudo que no Brasil tem um sistema judiciário só pra gerir o sistema eleitoral. E no Brasil, a Justiça é aquela senhora cega, armada de espada e segurando uma balança  que todos adoram, a não ser que ela esteja contra a gente. Todo o perfeito sistema eletrônico de votação brasileiro serviu pra uma mudança impensável até 20 anos atrás. Até então, era o povo que escolhia seus líderes e mandatários entre os políticos. Agora, é a classe política que escolhe o povo. Mas sorria. Amanhã será bem pior.

Umalas I Bali I Indonésia

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