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Relendo alfarrábios há muito relegados em
minha biblioteca, descobri um conto de Edgar Allan Poe em que ele dá o seu
receituário pra alguém se tornar um corrupto de primeira grandeza —o que facilita o cidadão comum reconhecer este corrupto. Segundo
Poe, a corrupção —ou
a ideia abstrata definida pelo verbo corromper— é geralmente compreendida pelo
cidadão comum. Entretanto, percebo nas minhas andanças que a maioria das
pessoas não compreende muito bem
como se dá a corrupção, notadamente no meio político, onde é mais disseminada.
Poe
não procura definir a corrupção, mas afirmá-la como um comportamento inato do
ser humano. “O homem é um animal que trapaceia”, afirma o escritor. Entenda-se
trapacear como o conceito fundamental da corrupção. Assim, o homem é um animal
que corrompe; e não existe nenhum outro animal que pratique a corrupção, a não
ser o homem. Certo? Certo!
Na
verdade, o ser humano está na essência da corrupção. Há outros animais que
praticam ações velhacas. Por exemplo: uma raposa engana; um corvo furta; uma
cobra ataca; um gato astucia; um papagaio finge. E um homem corrompe. E é
corrompido. Corromper e ser corrompido é seu destino, é sua índole. O homem (e
a mulher) foi feito pra corromper e ser corrompido.
Pra
ser corrupto, o sujeito tem de possuir algumas qualidades. O corrupto —e a
conseqüente corrupção— é composto por alguns ingredientes básicos: poderio, impertinência,
desfaçatez, minuciosidade, interesse, perseverança, engenhosidade, audácia e
displicência.
E
Poe dá as dicas de como conceituar essas qualidade inerentes ao ser corrupto, o
que proporciona às pessoas normais reconhecê-los como alguma facilidade:
Ter
poderio é possuir grande poder,
isto é, ter o direito ou força de ordenar, de agir, de se fazer obedecer, deter
autoridade, domínio. É o agente capaz de mandar asfaltar uma via pública sem
questionar os valores propostos pelos construtores. E se alguém de fora
questionar, argumenta na lata: “Você por acaso sabe quanto custa cem metros
quadrados de asfalto, seu cretino?!” Ninguém no Brasil sabe!, exceto quem detém
o poder de mandar asfaltar uma rua ou estrada. Portanto...
A
impertinência: o corrupto é
impertinente, fala ou age de maneira desrespeitosa, ofensiva; inconveniente,
insolente, atrevida, desrespeitosa. É
um gozador, que escarnece do cidadão, fanfarreia, aponta-lhe o dedo médio em
riste, bebe a sua cerveja, pede seu dinheiro emprestado, chuta-lhe a bunda e,
se se distrair, ainda planta-lhe chifres.
O
verdadeiro corrupto tira tudo da sociedade com um riso de escárnio. Essa é a desfaçatez. Mas ninguém lhe vê o riso,
senão ele mesmo. Depois que ganha o dia (e sempre o ganha), ele vai pra casa,
deita-se na cama, apaga a luz e ri. Ri muito de todos. Um corrupto não seria um
corrupto sem o riso debochado. Em público, esse riso é substituído por frases
do tipo “eu não sabia que isso estava acontecendo”.
Minuciosidade é uma das
características do corrupto. Ele faz tudo com a máxima atenção e cuidado; é meticuloso
e cuidadoso. Suas operações, pequenas ou grandes, são realizadas com o maior
cuidado. Nunca um detalhe é deixado de lado —o diabo está nos detalhes, ele
pensa. Por isso, raramente é apanhado com a boca na botija —ou em qualquer
outro tipo de vasilhame. E, se apanhados, têm uma enorme capacidade de cuspir
tudo imediatamente, o que sempre é acompanhado de derrisão.
Interesse. Isso é fundamental. O
corrupto tem seus passos guiados pelo interesse próprio. Tem o maior desprezo
por ser corrupto pelo simples prazer da corrupção, pois a motivação é
fundamental. Tem sempre dois objetivos em vista: o bolso alheio, do cidadão
(pra tirar) e seu próprio bolso (pra preencher).
Perseverança: outro ponto
primordial. O corrupto nunca se desencoraja. Não é a ação dos cidadãos, dos
eleitores, da polícia, que vai fazê-lo abandonar seus intentos. A contumácia, a
pertinácia, a renitência, são uma constância na sua índole. Ele é obstinado e
nunca abandona o jogo, mesmo que o juiz marque um pênalti aos 44 minutos do
segundo tempo. O dinheiro é sempre capaz de entortar alguns pés certeiros.
O
corrupto é dotado de engenhosidade e
criatividade. Em geral, tem muitas e variadas aptidões: já lavou pratos, foi
motorista, tem muitos phds, dobrou paraquedas. Entende de planos, inventa,
enreda. Está sempre pronto a assumir algum cargo (de preferência em comissão).
Se está em ascensão, assa um saboroso churrasco, produz uma deliciosa
caipirinha e nunca ganha no pôquer. Se está na ponta da pirâmide, é incapaz de
reconhecer uma nota de cem e não sabe como depositar um cheque.
Audácia. O corrupto é sempre
audacioso. É um homem arrojado, atirado. Nada o assusta. Quando entra em campo,
recebe as caneladas sem gritos, mas revida sem remorsos. É capaz de cantar a
mulher do amigo, mesmo que seja uma baranga, e recebe uma comissão por baixo da
mesa de um botequim sem que ninguém perceba. E negocia até com o bispo, mesmo
com o risco de ser excomungado e extorquido no dízimo.
Finalmente,
a displicência... O corrupto é
displicente. Tem nervos de aço. Nunca se deixa levar pela comoção. Só se
estressa no recesso das suas hostes. Nunca fica fora de si, a não ser portas
adentro. E é complacente, complacente como um chinelo velho. É capaz de
argumentar, como a maior cara dura, que “cansei de ir ver jogo de futebol a pé —nunca
tivemos problema de ir a pé. Vai a pé, vai descalço, vai de bicicleta, vai de
jumento, vai de qualquer coisa. A gente está preocupado que tem que ter metrô
ou carro, tem que ir até dentro do estádio? Que babaquice é essa?”
Não
se sabe exatamente quando surgiu a corrupção. Eu penso que surgiu no momento em
que um ser foi identificado como humano. Os criacionistas dizem que o primeiro
corrupto foi Adão (ao ser subornado pela mulher pra comer a maçã). Os
evolucionistas dizem que foi o Orrorin tugenensis descoberto no Quênia. Mas
isso não tem lá muita importância.

Interessa
é que podemos seguir retrospectivamente os traços da história da corrupção
desde a mais remota antiguidade. Numa rápida leitura do Código de Hamurabi, um
dos mais antigos conjuntos de leis de que se tem conhecido, escrito por volta
de 1.800 a.C., o leitor denota que a corrupção já era conhecida em priscas
eras. Leia este artigo: “Se um construtor
edificou uma casa para um Awilum (homem livre), mas não reforçou seu trabalho, e a casa que construiu caiu e causou
a morte do dono da casa, esse construtor será morto". E há dezenas de
outros artigos invectivando a corrupção.
Mas
se a corrupção é muito antiga, os modernos a aperfeiçoaram de maneira jamais
sonhada pelos estúpidos antepassados dos seres humanos. A corrupção atingiu um
tal grau de eficácia e eficiência, que hoje praticamente é impossível acabar
com ela ou com seus agentes, os corruptos. Lembre-se de que daqui a alguns dias
teremos novas eleições presidenciais e estaduais no país. E que nada que se faz
hoje em dia consegue dar um fim na corrupção, processo que se dá sempre na
escuridão; não é possível reconhecer um corrupto na claridade. Eles são seres
das trevas.
Umalas | Bali | Indonésia
28 de maio/2014
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