quinta-feira, 17 de abril de 2014

_A alma de Gabo permanece

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"A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada" foi o primeiro escrito que li de Gabriel Garcia Marques. O título do livro —que contém mais seis contos— me chamou a atenção numa livraria e eu o comprei no impulso. Além da história que dá título à obra, e que ocupa boa parte do volume, a obra contém outros contos geniais como "A Última Viagem do Navio Fantasma", "O Afogado Mais Bonito do Mundo" e "O Mar do Tempo Perdido". O livro foi lançado em 1972 e Gabo recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, dez anos depois que a obra foi lançada na Colômbia.

A história que dá título ao volume foi desenvolvida a partir de uma passagem contida em seu mais famoso romance, "Cem Anos de Solidão", em que uma avó escraviza sua neta, tornado-a prostituta até que consiga lhe reaver o dinheiro que perdeu quando a casa onde moravam queimou-se em um incêndio que teria sido provocado pela menina.

Depois disso li outros livros de Garcia Marques, como, claro, "Cem Anos de Solidão" (1967) —que estou relendo, mas em inglês—, uma das obras mais famosas da literatura mundial, "O Amor nos Tempos de Cólera" (1985), "Crônica de uma Morte Anunciada" (1981), "Notícias de um Sequestro" (1996), "Relato de um Náufrago" (1970), "Ninguém Escreve ao Coronel" (1961) e outros, mas não li seus escritos mais recentes.

Ontem, quinta-feira (17/abr./2014) García Márquez morreu. Eu o vejo como um dos mais importantes escritores do século 20 e um dos mais renomados autores latinos da história. Um homem lúcido e antenado no mundo que o cercava.

Todo o drama da “incrivel e triste história da Cândida Eréndira e sua avó desalmada” foi  muito marcante pra mim. É um espetáculo que tem como foco o corpo, o sexo da menina, que tem apenas catorze anos. A narrativa naturaliza a mulherbiologia, anestesiada, adormecida entre o trabalho compulsório e o sexo compulsório e compulsivo. Nele vemos a reprodução do mito de que as mulheres alimentam secretamente o desejo de ser objeto sexual, vítimas de estupro.

Eréndira vai se tornar sujeito usando de seu corpo de menina. Ela é toda sexo, só sexo. Em seus poucos momentos despertos, lúcidos, é o ódio e a conspiração que orientam e mantêm Eréndira viva. Não há lugar para o “amor” na narrativa de Gabo, só há lugar para comércio sexual.
É o sexo que movimenta, define e mobiliza os personagens. O elemento libertador é o uso que a garota faz de seu sexo: Eréndira, a prostituída, age como a prostituta ao manipular o amor que o jovem Ulisses sente por ela (“Ulisses”, personagem com nome de herói que heróica e cegamente cumpre o que lhe é determinado pela amada). Em nome deste sentimento o jovem apaixonado assassina a avó e é, no conto, reduzido à condição de criança. O amor retira de Ulisses sua condição de sujeito, de homem, porque o cega e fragiliza.

Este é um trecho de que gosto muito e que mostra com rara lucidez toda a situação: “... quando se convenceu de que estava morta seu rosto ganhou de chofre toda a maturidade da pessoa adulta que não lhe haviam dado seus vinte anos de infortúnio(...) Ia correndo contra o vento, mais veloz que um veado, e nenhuma voz deste mundo poderia detê-la. Passou correndo sem voltar a cabeça pelo ardente vapor dos charcos de salitre, pelas crateras de talco, pelo torpor das palafitas, até que se acabaram as coisas do mar e começou o deserto, mas ainda continuou correndo com o jaleco de ouro para além dos entardeceres de nunca acabar, e jamais se voltou a ter a menor notícia dela nem se encontrou o menor vestígio de sua desgraça.”

Gabo se foi fisicamente. Mas sua alma permanece 

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