terça-feira, 19 de novembro de 2013

_Da perspectiva dos anjos

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Desde que me entendo por gente, politicamente me coloquei na posição da esquerda, até porque minha índole é anarquista e a esquerda era o que mais se aproximava do anarquismo. Logo... A frase-lema de Pierre-Joseph Proudhon —“Quem quer que seja que ponha as mãos sobre mim, para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo”—sempre foi pra mim uma diretriz, um princípio.

De modo geral, as pessoas classificam anarquistas como criminosos, Mas minha modesta concepção é simples: a diferença que existe um sociedade estatal e uma sociedade anárquica é a mesma que existe uma estrutura e um organismo; enquanto uma é construída artificialmente, o outro cresce de acordo com leis naturais. Simples assim.

Mas meu foco neste texto não é o anarquismo, mas as diferenças entre esquerda e direita no mundo moderno. Quase sempre dogmáticos, os historiadores, descrevem as grandes ideologias do século XIX —conservantismo, liberalismo e socialismo— com a ajuda de um modelo conceitual que situa esses movimentos num contínuo de direita para a esquerda (ou vice-versa), de acordo com sua preferência pelo status quo hierárquico (a direita) ou pela reforma liberalizante e igualitária (a sinistra).

Ao final do século 20, com o eclipse tanto da esquerda histórica (socialismo) quanto da direita histórica (conservantismo), as posições de "esquerda" e "direita" não parecem mais definíveis com tanta limpidez como acontecia no início do século passado. E falo disso novamente porque o PT voltou à ladainha de chamar de direitistas todos os seus adversários, não importa de que lado estejam, como se fossem os donos esclusivos da esquerda.

Não é assim, até porque parece superada hoje a diferenciação esquerda-direita, por causa da nova proeminência das questões ambientais, superando em parte as questões da distribuição econômica, sobre as quais se baseava, em termos históricos. Há também questões éticas e filosóficas. Uma pressuposição fundamental do capitalismo industrial do século 19 e de seus críticos socialistas —a de que é possível ter uma contínua acumulação e expansão econômica— não prevalece mais. A distinção esquerda-direita, porém, conserva sua utilidade para a compreensão dos objetivos e valores fundamentais dos movimentos políticos no século 21.

Só pra recordar, a terminologia esquerda-direita surgiu na Convenção Nacional da Revolução Francesa (1789): as facções mais revolucionárias sentavam-se do lado esquerdo da mesa diretora, enquanto os parlamentares mais conservadores permaneciam à direita. Os deputados da esquerda eram favoráveis a reformas que levassem a mais liberdade e igualdade, enquanto os da direita preferiam os arranjos mais tradicionais e mudanças menos profundas.

Na extrema esquerda estavam os movimentos que favoreciam a igualdade econômica compulsória; na extrema direita estavam os monarquistas, que queriam restaurar os privilégios aristocráticos e o poder absoluto da monarquia e da aristocracia, além de fortalecer o poder econômico da burguesia e do patriciado.

A igualdade e os direitos das pessoas eram os valores fundamentais que determinavam a localização dos movimentos no espectro político. Quanto maior o compromisso de alcançar igualdade, mais pra esquerda o movimento se situava na percepção dos contemporâneos. A esquerda defendia a progressão para uma sociedade mais democrática; a direita propunha a manutenção ou restauração das hierarquias e relações sociais costumeiras. Nos extremos do espectro ficavam as facções que propunham a revolução, quer para alcançar a igualdade e acabar com a hierarquia, na esquerda, ou para restaurar a hierarquia e impedir a igualdade, na direita.

O que complica esse modelo conceitual, no entanto, é a contradição entre fins revolucionários e meios que surgiram na prática, depois da Revolução Comunista da Rússia em 1917. Para os bolcheviques, na extrema esquerda, o compromisso com a revolução social igualitária era tão grande que virtualmente qualquer meio —violência, demagogia, terrorismo, ditadura— parecia aceitável para a realização dos seus fïns.

Essa disposição para recorrer a métodos radicais leva ao paradoxo, observado com freqüência na história de que os métodos rigorosos de revolucionários da esquerda muitas vezes abalaram seus proclamados objetivos igualitários e democráticos. É por isso, que os esquerdistas mais radicais aceitam passivamente criminosos como Stalin, Mao Tze Tung, Muammar Ghadaffi, Fidel Castro e tantos outros, acusados de grandes chacinas de adversários. Até ditadores de fancaria do tipo Hugo Chávez são aceitos incondicionalmente.

A direita, por seu lado, se não chega a endeusar figuras como Adolf Hitler ou Benito Mussolini, aceita impassível meliantes do tipo Harry S. Truman, o das bombas atômicas no Japão, George Bush, Idi Amin Dada, Papa Doc, Francisco Franco e outros do mesmo calibre. Alguns chegam a ser homenageados com nome de rua —veja os casos de Emílio Médici, Francisco Franco e tantos outros que são nomes de rua por este país afora. Cada lado tem o criminoso que merece. Resumindo: pimenta no fiofó alheio é refresco.

Não faz muito tempo, o poeta e cronista Ferreira Goulart escreveu no jornal Folha de S.Paulo que "(...) entendo que a dificuldade de definir, hoje, esquerda e direita é consequência do avanço das ideias progressistas. Conhece alguém que se oponha à construção de uma sociedade justa? Eu não conheço. Difícil mesmo é chegar lá."

A idéia das velhas esquerdas dos anos 1950 a 80, de luta armada, totalmente fora da realidade, só serviu para estimular a reação antidemocrática. Não me entusiasma a sociedade de consumo desenfreado, nem penso que o mercado seja o árbitro de todos os valores. Esses têm de vir da cultura, da sociedade, das pessoas. Sem radicalismos de "direita" e "esquerda". "Todas as revoluções passam", dizia Kafka, "e só resta o lodo de uma nova burocracia"...

Não estou certo de que a discussão política sobre o que distingue a direita da esquerda seja apenas uma questão política ou se é, antes, uma questão filosófica relevante. Aliás, é muito raro encontrar tais conceitos na literatura filosófica. Seja como for, há uma tendência muito frequente nas discussões sobre direita e esquerda que me parece filosoficamente estéril e que consiste em caracterizar ambos os lados de tal modo que se torna imediatamente óbvio a uma mente equilibrada que um deles está errado e o outro certo.

No Brasil, ambas são burras. A direita, fora do governo, não consegue ter uma estrutura mínima pra fazer oposição. A esquerda, que governa, quer fingir que não é governo. Um exemplo disso foi a tentativa de promover manifestações contra a prisão dos mensaleiros, que aconteceu no último final de semana.

Se a gente pensar bem, nada foi mais ridículo que as tais manifestações. As ditas militâncias petistas deviam mais é cancelar o diabo da "manifestações" e parar de escrever bobagens sobre esquerda e direita.

Se, na caracterização filosófica de uma disputa, se torna evidente, para um ser racional interessado na verdade, que num dos lados estão os bons (ou os que pensam bem) e no outro lado os maus (ou que pensam mal), então tal caracterização nada tem de filosófica. A distinção em causa não passaria, nesse caso, de uma diferenciação pseudo-filosófica. Mas é sempre bom ficar como o vesgo, olhando pra os dois lados: cuidado quando a esquerda e a direita estão de acordo!


Ou esquecer o horizontalismo da questão, verticalizando-a: os bons no alto, os maus embaixo. Mesmo porque hoje a diferença fundamental entre esquerda e direita é que a direita quer deixar a barraca firmemente armada e a esquerda quer imediatamente chutar o pau da dita cuja barraca. Eu prefiro ficar por cima e olhar as coisas da perspectiva dos anjos. 

Umalas | Bali | Indonésia

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