domingo, 1 de julho de 2012

_Que tal chamar o ladrão?

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Faz uns dias, emissora de tv local veiculou breve reportagem (na televisão, quando o assunto é sério é breve) sobre o roubo de energia elétrica. E conclamava a população a dedurar quem comete tal crime. E está certo: ninguém pode sair por aí afanando eletricidade ou qualquer outro bem concreto ou abstrato. Mas no caso da energia elétrica, existe outro lado do qual a mídia nunca fala; afinal, as empresas energéticas são grandes anunciantes.

É o caso do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) cobrado "por dentro". Todos que passaram pelos bancos das escolas e estudaram a velha aritmética certamente aprenderam o cálculo de porcentagens. Aprendeu, com certeza, que 25% de R$ 1.000,00 são R$ 250,00. Simples, né? No caso do ICMS da energia elétrica não é bem assim. Nem tente calcular o percentual do imposto da sua conta de luz porque você vai achar em emburreceu.

Não tem mágica nesse procedimento. Acontece que a legislação do ICMS considera que o valor do próprio imposto deve integrar a base de cálculo. Isto significa que se o imposto estabelecido for de 25% (um percentual comum à beça no caso do ICMS), o imposto real sobre um valor líquido de R$ 1.000,00 corresponderá a R$ 333,33, ou seja, mais de R$ 80,00 além do que se o imposto fosse calculado de forma direta, simples e transparente. Para se chegar a esse valor é preciso considerar que R$ 1.000,00 correspondem não à base de cálculo, mas sim ao  resultado de uma subtração, qual seja a base de cálculo menos o valor do imposto.

Dessa forma, R$ 1.000,00 são apenas 82% do valor sobre o qual os 25% devem incidir. Na prática, em uma operação teoricamente taxada com a alíquota de 25% de ICMS, o imposto é de 33,33%. É o cálculo “por dentro”, como dizem os contadores. O que também significa a cobrança do imposto sobre o imposto. É isto mesmo: pagamos ICMS sobre o valor do ICMS. O pior é que esse método pouco transparente de se cobrar impostos é real e considerado legal pelas autoridades; considera-se perfeitamente legítimo dispositivo segundo o qual o valor do ICMS deve integrar sua própria base de cálculo.

O economista Normann Kallmus, que deu a maior força na redação deste aritgo, tem inclusive um cálculo mais simplificado. Vamos lá:


$ pago
$serviço
% imposto
$ICMS
fórmula ICMS
calc. fora
1.250,00
1.000,00
25,0
250,00
imposto=1.000x(25/100)
cálc. dentro
1.250,00
937,50
33,3
312,50
imposto=1.250-[1.250x(1-0,25)]

Diz Kallmus que é "simples. Não requer prática nem, tampouco, habilidade". E continua: “introduzir a complicação disparatada do cálculo por dentro e depois, demonstrar outra vez com a tabelinha" Normann Kalmus acrescenta que "só a diferença da fórmula já indica que os legisladores não estão nem um pouco interessados em simplificar a coisa".

Até há pouco tempo, na maioria dos estados, essa fórmula de cálculo era adotada apenas para as operações no mercado interno. Ante as queixas da indústria local, prejudicada com a vantagem concedida aos produtos importados, o governo resolveu corrigir a falta de isonomia. Mas em vez de igualar a forma de cobrança no mercado interno à adotada no caso dos produtos importados, preferiu alterar a legislação para determinar que nas importações o valor do imposto passasse a ser calculado da mesma forma que nas operações no mercado interno, em que o valor do imposto integra sua base de cálculo. Na prática, aumentou o ICMS das importações e gerou, de lambuja, um aumento na arrecadação dos estados. Tudo em nome do atendimento a um pleito dos  próprios contribuintes.

O tema não é simples e já foi objeto de muita discussão no Judiciário, que acabou acatando a tese segundo a qual não é inconstitucional cobrar o ICMS “por dentro”. Mas certamente também não seria inconstitucional nem tecnicamente inviável cobrá-lo “por fora”. Vale a pena lembrar que o IPI não incide sobre si próprio, como também não incide sobre si o IVA, adotado em outros países.

O cálculo do ICMS “por dentro” impede ou pelo menos torna mais difícil que o cidadão comum, consumidor final, fique, ele sim, “por dentro” de quanto está pagando efetivamente de imposto, a não ser que por alguma razão, exija uma nota fiscal completa, com o valor do imposto destacado. Além disso, o cálculo “por dentro” dificulta a emissão das notas fiscais e a contabilidade das empresas, principalmente as de menor porte, aumentando custos burocráticos.

Em todas as campanhas pela reforma tributária, sempre se disse que é preciso reduzir o número de impostos, taxas e contribuições e tornar simples, desburocratizado e transparente o pagamento de quaisquer tributos. Esse sempre foi um ponto de convergência no tocante às posições dos políticos, do empresariado e de toda a sociedade civil.

As tentativas de se corrigir o problema sempre esbarraram em dificuldades relacionadas com a sanha arrecadadora dos governos dos Estados. Passar a cobrar o imposto “por fora” resultaria em significativa perda de arrecadação. E quanto a isto, não vale a pena iludir-se. Governos não abrem mão de receitas já conquistadas.

E, quando abrem, lamentam miseravelmente, como foi o caso do governador do MS, André Puccinelli, que reclamou no fim da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que foi zerada pelo Governo Federal para evitar um aumento no preço dos combustíveis. Puccinelli afirma que Mato Grosso do Sul perderá 24 milhões de reais por ano com o fim da Cide.

Mas voltemos ao nosso assunto. O que deveria acontecer seria os comissários darem um fim numa norma tão esdrúxula como a que determina a cobrança do imposto sobre o imposto. Seria, além de tudo, um passo na direção de um verdadeiro imposto  sobre o valor agregado. Deveriam ser fixadas novas alíquotas para o ICMS e que ainda se leve em conta a mudança de critério. E que se tenha coragem de dizer que a nova alíquota do imposto, a ser calculado “por fora”, corresponde ao que se pagaria, na prática, se o imposto continuasse a ser calculado “por dentro”.

É preciso, no entanto, o compromisso de que isto não será utilizado como instrumento para aumentar o imposto efetivo e a carga tributária como um todo. E é conveniente que se insira na legislação, isto sim, dispositivo determinando expressamente que o valor de qualquer imposto não pode integrar sua base de  cálculo, de forma a afastar o risco de que, no futuro, algum governo em busca do aumento de  receitas, reinterprete a matéria, mudando novamente a base de cálculo, mas mantendo a alíquota  mais alta.

Haverá quem discorde. Para o governo, explicar que um imposto é maior do que se pensa não é tarefa simpática. Mas se queremos mesmo um sistema tributário melhor precisamos enfrentar questões como esta. Simplificar e tornar mais transparente as maneiras com que o estado arranca o rico dinheirinho do cidadão em forma de imposto é extremamente importante.

Mesmo porque, da maneira que está hoje, a cobrança do ICMS sobre o consumo da energia elétrica configura uma tunga disfarçada de imposto no cidadão. E ninguém, inclusive a mídia dita séria, faz nada pra mudar essa situação. Trocando em miúdos, não passa de roubo —simples assim.

E o cidadão não tem a quem recorrer. Melhor, como já disse Chico Buarque, chamar o ladrão —este afinal não usa de subterfúgios pra te bifar. E também não adianta apelar para os parlamentares que criam as leis: apesar de teoricamente representarem a sociedade, eles legislaram a favor dos governos que os sustentam. Afinal, os políticos dominam 1.001 maneiras de estorvar o cidadão. E todas elas funcionam.

Um comentário:

Ari Vargas disse...

Já tinha percebido essa "pegadinha" na conta de água. Consultei um advogado que disse q havia embasamento legal para a cobrança dessa forma. Então....