quinta-feira, 10 de junho de 2010

::Carga pesada

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Sufocado por uma pesada carga de tributos sobre o consumo, o contribuinte brasileiro, em regra, ignora a cota de sacrifício a que é submetido em prol da manutenção das instituições públicas que não raramente lhe viram as costas. Tal distanciamento reflete primordialmente a fonte básica de informação de cidadãos com baixo grau de escolaridade e limitados recursos econômicos: a televisão. Telejornais, telenovelas e os outros tipos de programas —em geral burros— não abordam de maneira satisfatória e didática, se é que isso é possível, a complexa estrutura tributária brasileira.

As informações sobre o excesso de tributos e pesada carga tributária são constantemente repetidas, geralmente com foco na competitividade dos produtos brasileiros frente aos importados ou ao desempenho das empresas. As discussões sobre as conseqüências dessa carga tributária no custo de vida do cidadão e na distribuição de renda passam ao largo de tais veículos de comunicação. No mais das vezes, quando não pode pagar, o cidadão é chamado de sonegador ou caloteiro pela mídia. Não resta ao vivente do andar de baixo senão a alternativa de pagar seus impostos e fechar o bico.


Os tributos diretos —aqueles que o próprio contribuinte fica responsável pelo pagamento— são os mais adequados a essa finalidade. Ocorre que, por incidirem sobre a renda e patrimônio, excluem as camadas economicamente desfavorecidas e acabam por se tornar uma exclusividade das classes média e alta. A população de baixa renda, com vencimentos isentos da tributação pelo imposto sobre a renda, não tem a felicidade de acumular patrimônio suficiente a ser tributado —e tem gente que, bestamente, acha isso ótimo. O incentivo à flexibilização das relações de trabalho e as crescentes relações informais de emprego afastam cada vez mais essa categoria de cidadãos dessa forma mais justa: o pagamento de impostos diretos.


Nossa estrutura tributária reserva aos cidadãos de baixa renda a posição de maiores contribuintes proporcionais de impostos indiretos, a grande fonte de renda da administração pública brasileira. A quantidade desses tributos incidentes sobre as mercadorias e serviços é vasta: Cofins, IPI, ICMS, ISS e outros. O clima de mistério se inicia com o nome de tais tributos, um enigma a ser desvendado pelo cidadão não iniciado no mundo da indecifrável sopa de letrinhas que batiza os tributos indiretos. Uma característica que, aliada à extensão e complexidade da legislação, acaba por tornar tais tributos incompreensíveis para parte significativa dos contribuintes.


A multiplicidade de siglas e acrônimos pode ser vista como um detalhe menor e pitoresco se comparada à falta de transparência na apresentação de tais tributos aos cidadãos que efetivamente arcam com o seu custo. O preço de mercadorias e serviços apresentado ao consumidor inclui uma significativa parcela de impostos e contribuições indiretos. Produtos não essenciais, como cigarros e bebidas alcoólicas, são os exemplos extremos; entretanto, itens cada vez mais indispensáveis, como energia elétrica e telecomunicações, também são tributados de forma voraz por nossa regressiva e agressiva estrutura tributária. As notas fiscais acabam por refletir o aparente desinteresse do Estado em apresentar a seus cidadãos os efeitos da carga tributária em seu custo de vida; tributos constantes no preço final da mercadoria vendida ao consumidor são apresentados de forma parcial, quase envergonhada.


Para se ter uma idéia, o brasileiro precisou trabalhar até o dia 28 de maio de 2010 pra pagar impostos e contribuições federais, estaduais e municipais do ano passado. Esse período representa um aumento de cinco dias em relação a 2009, quando o brasileiro precisava de quatro meses e 24 dias para ficar em dia com os débitos tributários. O brasileiro só trabalhou para si próprio a partir de 29 de maio. Antes disso, tudo o que ele recebeu foi destinado ao pagamento de impostos.


Como regra, dos tributos que incidiram sobre um bem, o contribuinte só consegue identificar e quantificar o ICMS —e nem sempre! –, permanecendo invisíveis os demais. Uma apresentação detalhada de toda a carga tributária presente naquela operação significaria uma verdadeira aula de educação tributária, uma nova visão da realidade comparável àquela que nos invadiu ao descobrirmos as primeiras letras.


Contrariando a tese de que os impostos são o preço a ser pago para se ter uma sociedade organizada, constata-se que essa montanha de recursos pouco redunda em benefícios para a coletividade. Ao receber serviços básicos de péssima qualidade, a população se vê obrigada a despender o pouco que lhe sobra em escolas particulares, planos de saúde e até em segurança privada. É de espantar que essa situação pouco incomode a média da opinião pública. E a mídia não aborda o tema. Prevalece a crença de que se faz justiça se o escorchado for o "outro".


Poucos percebem que todo esse dinheiro acaba, na média, muito mal gasto como resultado da má gerência, dos desperdícios a céu aberto, da corrupção endêmica e da amamentação de privilegiados. A sociedade brasileira não pode continuar achando normal repassar fração substantiva de tudo que é produzido para administrações quase sempre irresponsáveis. Precisa definir com firmeza o que está disposta a entregar aos governos.


Irrealista é supor que a qualidade de vida da população em geral, e da pobre em particular, possa melhorar substancialmente com os serviços públicos que lhe são oferecidos. Infelizmente, ingenuamente se aceita no Brasil a idéia de que o Estado tem o condão de corrigir marginalizações e graves assimetrias sociais se apropriando cada vez mais dos frutos do trabalho e da produção. A dinheirama arrancada dos bolsos de ricos (menos), pobres e remediados (mais) deixa de contribuir para a dinamização da vida econômica. Se o quadro da crise atual torna imperiosa a cobertura de déficits, então a saída é o corte implacável de despesas. Se há leis que impedem que isso seja feito na profundidade requerida, que se mude a legislação. O inadmissível é continuar sangrando a sociedade a ponto de torná-la anêmica pela destruição dos glóbulos vermelhos da produção e do trabalho.


Suecos, alemães e outros povos mais civilizados têm as maiores cargas tributárias do mundo, mas têm também um Estado do bem-estar que funciona a contento. Não é o caso do Brasil, o pior dos mundos, onde o inchaço do Estado se faz às expensas da vitalidade da economia. Sem falar que as diversas instâncias de poder não se entendem. São nítidas as sobreposições de funções e responsabilidades. E o essencial raramente é provido com o mínimo de qualidade desejável. Com uma carga tributária superior a um terço do PIB, está claro que a sociedade está sendo sugada pela voracidade arrecadadora do Estado.


O que impressiona é o fato de que o assalto programado à renda do contribuinte vem ocorrendo sem suscitar o repúdio esperado. A lamúria é difusa. Parece que poucos percebem a etiologia das carteiras esquálidas. Forte é a tendência dos brasileiros a bradar contra os efeitos por preguiça de escavar no pedregoso terreno das causas. Além de haver um medo generalizado das conseqüências. Poucos se dão conta de que a tributação irracional, uma das principais responsáveis pelas elevadas taxas de desemprego, é um de nossos grandes males.

Por mais que a Lei de Responsabilidade Fiscal tenha sido um avanço, não tem como impedir que os governantes se recusem a usar a "tesoura". Podem com a mais deslavada cara-de-pau aumentar de forma generalizada os impostos. O orçamento público pode se tornar cada vez maior sem que a fome de gastos seja aplacada. A "revolução da tesoura" ainda está por ser feita no Brasil. Há estudos que mostram que a redução de parte dos impostos provocaria uma queda drástica no desemprego e na informalidade.

Um grande passo seria fazer a sociedade participar efetivamente, com base em programas de educação tributária, que iriam agregar um número cada vez maior de cidadãos ao processo de avaliação e crítica da estrutura tributária do país. A transparência na apresentação dos tributos indiretos poderia significar uma decisiva contribuição na discussão de temas tão oportunos como reforma tributária, uma vez que traria para o debate amplos setores da sociedade que não se encontram em condições de emitir opinião pelo absoluto desconhecimento do tema. Não se admite um Estado democrático envergonhado de apresentar suas fontes de recursos. Todos os segmentos da sociedade devem e merecem ser chamados a participar da construção de nossas instituições e a transparência seria o necessário primeiro passo.

Muito por causa do desconhecimento, em todo o mundo, em todas as épocas, mesmo os cidadãos mais decentes não se sentem desonestos quando buscam fraudar impostos e taxas de seus respectivos países. Isso ocorre devido à crença generalizada de que todos os governos são desonestos e impostores. No Brasil isso é muito pior: aqui, a sociedade como um todo considera que os impostos são tão injustos, a carga tributária é tão pesada, que o cidadão pensa em sonegá-los mesmo quando está na mais negra das misérias.

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Texto Luca Maribondo
Ilustração Nicolai Punin

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