segunda-feira, 26 de abril de 2010

_Cinismo zero

>>>
É inegável que há, na política, um forte componente de cinismo. E um cinismo no pior sentido do termo, que vai muito além da hipocrisia, da desfaçatez, do descaramento. Aqui no Brasil isso vai mais longe, porque não parece haver na sociedade a percepção do que ocorre de fato —estudiosos até cunharam a expressão "cinismo cordial" para definir a questão de maneira mais clara.

Talvez porque adquirir consciência das características do habitus (condicionamentos comuns sedimentados pelos indivíduos ao longo da história) da nossa própria terra requer um difícil esforço de autodistanciamento. É fácil falar do que é típico dos outros povos, mas abordar o habitus brasileiro com espírito crítico exige entrar em território tabu defendido quase religiosamente pelos atores políticos e sociais.

O cidadão parece não concordar com isso e tende a viver seu patrimônio cultural comum como se fosse a bandeira nacional, algo dado à nação de uma vez e para sempre. Daí a seu endeusamento existe um curto passo. A campanha nacional, “o melhor do Brasil é o brasileiro”, veiculada pelo Governo Lula da Silva com o objetivo de resgatar a auto-estima do brasileiro, talvez seja um bom exemplo desta pretensão inconsciente de um congelamento beatífico da alma brasileira.

Mas existe mesmo essa coisa maravilhosa do brasileiro? Somos mesmo o que há de melhor neste País? Será que nas outras nações seus povos são o que há de melhor? O caso de Brasil certamente não é uma exceção. Somos lenientes com nós mesmos. Somos autocondescendentes: se algo tem que ser questionado, esse algo não pode ser o que os brasileiros têm em comum. Aí parece não haver nada de errado, muito pelo contrário. Por isso, nossos problemas derivam sempre dos outros, sejam eles outros atores ou outros países, mas nunca de nós mesmos. Mas eu particularmente acho que o brasileiro está muito longe de ser o que há "de melhor no Brasil".

Voltemos ao cinismo, porém: na política, o cinismo (diferente da filosofia, que pode constituir uma atitude autentica de negação de valores e consensos estabelecidos) pode ser entendido como ocultação intencional da verdade dos fatos, assim como dos valores que orientam realmente a ação dos sujeitos. Enquanto o cinismo filosófico tende a ser contraditório com a ação política, uma ética absolutista tampouco permitiria uma ação política democrática.

Em toda democracia avançada, o espaço da política está relacionado a uma aproximação responsável da verdade, o qual supõe não esconder diferenças nem conflitos inerentes a essas. No caso brasileiro, o cinismo impede essa aproximação responsável à verdade, talvez por medo das capacidades destrutivas do conflito (em geral, não se diz “não” em publico, quando não se responde ou se responde com um “sim” difuso ou um “talvez” quer dizer quase sempre “não”; apenas um “sim” enfático é “sim”).

Neste sentido, o cinismo cordial traz uma certa racionalidade ao campo da política, quando esta carece de uma racionalidade própria assentada no funcionamento de instituições confiáveis. Mas, em compensação, gera irresponsabilidade. No caso do cinismo cordial, os males do grupalismo (típico da cultura populista corporativa, exacerbada pelo governo lulo-petista) são mitigados pelo caráter aberto e flexível da relação cínica cordial, ainda que esta não seja claramente individualista. Na cultura do cinismo cordial se aumenta a confiança entre grupos e em parte também das instituições mas se mantém a desconfiança inter-individual que impede uma construção institucional plenamente funcional a uma moderna economia de mercado.

Numa democracia de alta confiança nas instituições não é difícil estabelecer consensos duradouros. Mas na cultura cínica cordial brasileira existem enormes dificuldades para estabelecer consensos estratégicos. Nesta cultura existe pragmatismo, embora este seja pouco realista, com baixo compromisso com a avaliação objetiva de resultados e desempenhos (como corresponde à racionalidade científico-técnica). O pragmatismo do cinismo cordial é difuso, baseado em acordos de interesses inter-grupais (grupos, corporações e máfias) que deixa fora aos indivíduos enquanto tais.

O cinismo cordial é um modelo comunicacional dominante em todos os setores da sociedade (embora em graus diferentes, isto é valido tanto para políticos, empresários, cientistas, artistas, profissionais liberais etc.). No presente, o cinismo se torna bastante evidente no campo das ideologias políticas. No caso da esquerda se expressa como consciência iluminada falsa, desde que existe um subentendido na esquerda de que os ideais coletivistas fracassaram (ao menos parcialmente), mas isso não pode ser explicitado porque ameaça sua identidade. No caso da direita, o cinismo cordial se expressa como consciência travestida, apresentando-se mais à esquerda do que realmente é, rendendo tributo à cultura pós-regime militar.

Nós tivemos um exemplo gritante na semana passada, quando uma foto da atriz Norma Bengell identificada como Dilma Rousseff causou constrangimento neste fim de semana, no blog oficial da candidata do PT à Presidência de república. Na primeira página do blog uma montagem fotográfica mostra três momentos da Dama de Pedra: ela criança (ela já foi sim!), ela jovem e ela atualmente. Só que a foto da juventude, encabeçando uma passeata contra a ditadura militar, é da Norma Bengell

Depois de serem avisados do erro, responsáveis pelo blog www.dilmanaweb.com.br divulgaram nota em que lamentam a lambança. Mas põem a culpa em quem? No cara que de dá ao trabalho de acessar o blog.

Leia: o blog Dilmanaweb lamenta profundamente a interpretação equivocada da foto que traz a atriz Norma Bengell participando de uma passeata contra a ditadura. Jamais houve a intenção de confundir a sua imagem com a de Dilma, o que seria estapafúrdio, ainda mais se tratando de uma figura pública. O que se busca, ali, é ressaltar um momento da vida do país do qual Dilma participou ativamente. Outras fotos do blog fazem referência a esse momento em que os brasileiros foram às ruas pedir o fim da ditadura. Dilma participou de todas essas lutas. Elas fazem parte de sua vida e da vida de milhões de brasileiros. Lamentamos eventuais mal-entendidos que possam ter ocorrido e tomaremos providências para evitá-los.

Veja que coisa. Roubam a imagem da Norma Bengell, apresentam a atriz como se fosse a candidata a presidenta, mas a culpa é de quem entendeu “errado” a mensagem (ou seja, você, eu, nós… ). A Pepper, agência que emprega o senhor Marcelo Branco, um desses neo comunicadores que se os bambambam nas chamadas novas mídias, bem que tentou se desculpar, mas não colou. Só sobrou o cinismo.

Não terá chegado o momento de exigirmos cinismo zero dos políticos? Ainda aceitando que o cinismo cordial serviu para cimentar no passado uma realidade política e social ampla e diversa, sendo portanto relativamente funcional à transição democrática, é evidente que hoje gera desconfiança e se torna um obstáculo, tanto para a aprofundar a modernização como a democratização.

Mas se o cinismo cordial (ou não-cordial) está presente ao longo da evolução e do espectro político brasileiro, quem poderá se animar a encampar uma campanha pelo cinismo zero? Assim como a tolerância, o cinismo também tem limite. E já está na hora de nós, brasileiros, nos convencermos que esse limite chegou, faltando apenas reconhecê-lo. Mas enquanto isso não acontece, nossos líderes políticos, por mais hábeis que sejam, terminam sempre cometendo algum tipo de sinceridade.

Nenhum comentário: