sexta-feira, 5 de março de 2010

_Moral e bons costumes

Uma onda de falso moralismo se abate sobre o mundo. Dia desses campanha publicitária do Grupo Schincariol para a cerveja Devassa Bem Loura (será que alguém é capaz de beber uma cerveja chamada Devassa?!), estrelada pela socialite norte-americana Paris Hilton, não resistiu à mira do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e deixou de ser veiculada. A instituição autorreguladora da publicidade brasileira enviou a notificação de sustação liminar à Schincariol após ter aberto quatro processos de denúncia contra a campanha, e o grupo decidiu suspender o material.


Dizem os jornais que as primeiras denúncias recebidas pelo Conar partiram de consumidores, incomodados com o apelo sensual excessivo da propaganda —gozado que esses mesmos consumidores bebem qualquer porcaria de cerveja fabricada no Brasil e não reclama. O segundo processo partiu do próprio Conar e referia-se a algumas partes do site da campanha. A terceira notificação foi motivada pela Secretaria Especial de Defesa da Mulher, vinculada à Presidência da República, que nada fez contra a Hilton, que é mulher e aceitou fazer o comercial. A quarta denúncia recebida pelo Conar foi da cervejaria Petrópolis, com teor semelhante ao levantado por consumidores.


Pelas bandas de Campo Grande, um vereador que se diz defensor da moral e dos bons costumes, apresentou projeto de lei —que acabou sendo aprovado pelos seus pares— proibindo a publicidade e a exposição de estabelecimentos comerciais que vendem produtos considerados (pelo parlamentar) pornográficos. Assim, sexshops, livrarias, bancas de jornal e até lojas de roupas íntimas não poderiam anunciar seus produtos. A lei, como foi dito acima, foi aprovada mas vetada pelo prefeito da cidade, que demonstrou ter mais um bocadinho de siso.


Mas a coisa não desandou só pelas terras tupiniquins não. Nos Estados Unidos, uma família do Estado de New Jersey foi obrigada pela polícia a cobrir o peito desnudo de uma réplica da "Vênus de Milo" de neve que esculpiu em seu próprio jardim. Elisa González, mãe de 44 anos residente na localidade de Rahway, contou que construiu, junto com os filhos de 12 e 21 anos, a cópia da famosa estátua grega (atribuída a Alexandros de Antióquia), cujos braços se perderam.


"Muitas pessoas do bairro saíram às ruas, se interessaram e tiraram fotos, vizinhos com quem nunca tínhamos falado antes", relatou González às folhas. Mas um vizinho que covardemente não se identificou denunciou a presença da mulher de neve desnuda e a polícia pediu que fosse vestida ou destruída. "Não quisemos ter problemas com a polícia e a cobrimos com uma roupa", disse a mulher.


Esta Casa do Maribondo citou apenas três acontecimentos que ocuparam as parangonas dos mídia. Mas tem muito mais: as posições das igrejas cristãs sobre homossexualismo, a apreensão de livros em Braga, Portugal, por eventuais atentados à moral e aos bons costumes.


Entre estes fatos há algo em comum —a censura do sexo e atividades correlatas. Isto é, a tal defesa da moral e dos bons costumes. É fácil apontar o dedo para os moralistas e falsos moralistas, mas é preciso ir às causas profundas. Sendo o sexo uma componente normalíssima do ser humano, é preciso refletir sobre o porquê deste anátema e do considerar-se tudo o que com ele se relaciona atentatório da moral e dos bons costumes.


Sabe-se que a razão básica é da nossa tradição cultural e religiosa, mas, sendo o resumo da doutrina de Cristo "ama o próximo como a ti mesmo", e não sendo a atividade sexual, desde que consentida, agressiva para quem quer que seja, porquê a condenação? Só se encontra uma razão comum às chamadas religiões do "Livro" (judaísmo e seus derivados cristianismo e islamismo): o poder.


Os primeiros povos ligaram os fenômenos naturais a forças que não compreendiam e que relacionaram com "deuses". Nasciam as religiões e os homens que se arvoravam em intermediários entre os homens e essas divindades —os mágicos e sacerdotes, que tomaram logo uma grande ascendência sobre os outros. Quando surgem indivíduos que se arrogam proprietários de terras e subjugam os outros pela força, aliam-se aos feiticeiros e sacerdotes para consolidação conjunta do poder.


Neste contexto, inventa-se um deus que tudo vê e fiscaliza permanentemente os atos dos humanos. Para controle eficaz dos povos, nada melhor que controlar os seus instintos mais fortes, nomeadamente o da sobrevivência da espécie, o sexo, e o da sobrevivência pessoal, a alimentação. Talvez venham daí os preceitos religiosos, que depois se tornaram culturais, referentes às práticas sexuais e a certas dietas. É natural que inicialmente estes preceitos também tivessem intenções de saúde pública e controlo da natalidade.


Desta reflexão conclui-se que o sexo não pode ser atentatório da moral e dos bons costumes nem é minimamente razoável classificar e discriminar as pessoas pelas suas preferências nessa matéria. Alguém se lembraria de discriminar as pessoas por gostarem, ou não, de feijoada ou por andarem, ou não, de tênis? Então porque o sexo?


O que é atentatório da moral e dos bons costumes é ver que senhores que se apresentam como exemplares modelos sociais não passam afinal de uma cambada de ladrões e vigaristas, é ver lideranças políticas escondendo dinheiro sem origem em meias, cuecas e outras peças íntimas, é ver líderes religiosos se locupletando de grana também pouco explicada. A lista é longa e não cabe aqui. Isso é que é atentatório da moral e dos bons costumes e não há notícia de punição aos verdadeiros culpados.


Quanto à moral, não há como traçar os seus limites. Não há marco de pedra, régua, gps, trena, gelo baiano que posso por limite na moral. Como os limites da moral dependem da cultura, da época, dos indivíduos, da situação do momento (um exemplo: uma mulher dançando com a bunda de fora num dia de Carnaval é normal; mas se a mesma mulher dançar de bunda de fora no Sete de Setembro, vai em cana —e ambas são datas festivas), o imoral e o moralista acabam cometendo as mesmas imoralidades —a diferença é que o moralista não se diverte.

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