quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

_Mateus, primeiros os teus

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Inácia Krawitz é a gerente-geral do Le Vonduet Bar, que não é exatamente um botequim, mas um misto de cassino e lupanar de alto luxo estabelecido numa daquelas ruas cheias de curvas do Carandá Bosque, em Campo Grande, capital aqui da Guaicurúndia. O casarão de quase 1.500 metros quadrados, que ocupa mais de meia quadra, abriga roletas, mesas de bacará, rodas de pôquer e, é claro, lindas e jovens damas que fazem todas as vontades dos fregueses —clientes, como diz dona Nana— da casa.

Dona Naná, que é como a



Sra. Krawitz é carinhosamente conhecida por todos os freqüentadores do estabelecimento e por suas pupilas, diz que a casa pertence a um prócer político local, mas não revela seu nome – “Sou apenas a gestora e mentora do negócio”, garante ela.

Freqüentada por políticos, serventuários das mais altas sinecuras estaduais e municipais, empresários e profissionais liberais bem situados, o Le Vonduet é dotado de salas de jogos, piscinas, sauna, banho turco, suítes extremamente confortáveis, uma cozinha que atende os gostos de cada freguês individualmente —Zezé Gadelha, o chef de cuisine, sabe das preferências de cada um dos habitués da casa.

Do alto de sua sabedoria popular, dona Naná é uma das raras pessoas que defende, ainda que parcialmente, o nepotismo no Brasil – e, em conseqüência, em Mato Grosso do Sul. “Nepotismo e coceira é só questão de começar – assim que um parente mama, logo surgem mil pra mamar”, diz ela a respeito do assunto. Dia desses, no belo salão de refeições do Le Vonduet Bar, surgiu uma barulhosa discussão sobre as manobras do Tribunal de Justiça para barrar a Lei do Nepotismo, recentemente implantada na Guaicurúndia.

A Sra. Krawitz interrompeu o charivari para dar seu pitaco na altercação e mostrar aos presentes carta que havia mandado simultaneamente ao governador e ao prefeito. Devidamente autorizado por dona Naná, aqui reproduzo os termos da missiva ipsis litteri e ipsis verbi:

Caro Sr...


Volta e meia aparece na imprensa textos denunciando o nepotismo de algum governante ou político – o cara contratou não sei quantos sobrinhos, cunhadas e o escambau. Volta e meia surge também algum deputado com uma proposta de lei proibindo a contratação de parentes, com o total apoio da Fátima Bernardes, da Veja, do Edir Macedo, do Padre Marcelo, da Folha e do presidente Lula da Silva. Falar mal da contratação de parentes no serviço público, como elogiar o andar da Gisele Bündchen e a bunda da Débora Secco, é uma rara unanimidade nacional. Pelo que me consta, sou a única pessoa que não compreende a indignação moral que a todos une contra a contratação de parentes no serviço público.


Pra começar, parto do pressuposto de que alguns cargos de confiança, mesmo no serviço público, devem ser preenchidos sem a necessidade de concurso idem (público). São cargos temporários, subordinados ao mandato do chefe. O contratado vai embora quando o contratante perde o cargo. (A indignação da maioria dos ouvintes e telespectadores parte da falsa idéia de que os contratados, como os funcionários de carreira, ganharam uma boquinha vitalícia). Não acredito que ninguém defenda seriamente a idéia de que um prefeito ou um governador recém eleitos, por exemplo, possa manter como seu chefe de gabinete ou secretário particular alguém que já estava no cargo com seu antecessor.


Também não tem lógica nenhuma exigir que um cargo destes seja preenchido através de concurso público. E se um inimigo político, um sujeito que odeia o tal prefeito recém eleito, tirar primeiro lugar no concurso? Nem parece ser este o argumento dos anti-nepotistas. Todo mundo aceita que o tal prefeito convide quem ele bem entender para o cargo desde que não seja seu parente.


É evidente que a campanha antinepotismo tenta combater o empreguismo desenfreado que assola prefeituras, câmaras, assembléias e tribunais brasileiros. O cidadão ganha um cargo público e logo arruma emprego para toda a família. É evidente também que há casos em que o excesso é prova da má fé. Volta e meia tem prefeitos, governadores, juízes, desembargadores sendo denunciados pela mídia por ter preenchido todos os cargos públicos da sua prefeitura, palácio, parlamento ou tribunal com parentes.


Seria um absurdo igual se todos os escolhidos fossem ruivos ou se chamassem Genésio. É pouco provável que o critério de confiança e competência terminasse por escolher exclusivamente parentes, ruivos ou Genésio para os cargos. Mas daí a querer proibir a contratação de qualquer parente para qualquer cargo, vai uma longa distância.


Para o erário público não faz a menor diferença se o contratado é o amante, vizinho ou colega de creche (não-parentes) ou concunhado, primo-segundo ou tio (parentes). O que faz diferença é se o cara realmente é útil, trabalha e cumpre horário ou só aparece no fim do mês para buscar o salário, seja parente ou não.


As leis proibindo contratação de parentes não inibem em nada o empreguismo. Basta que um vereador ou conselheiro do tribunal das contas contrate o sobrinho do outro e o outro a filhota do um e fica tudo resolvido. E se o cara contrata uma secretária maravilhosa, gostosona, estenografa e poliglota, se apaixona por ela e casa? Ao tornar-se parente ela precisa ser despedida? E se o sujeito contrata alguém e descobre depois que ele é seu sobrinho por parte da ex-mulher? Me desculpem os moralistas de plantão, mas essa lei não pára em pé.


Me parece que uma lei deve ter base moral e não simplesmente tentar coibir excessos. (Tenho a impressão que, se todos os políticos eleitos pelo DEM nas regiões norte e nordeste e todos os presidentes e ex-presidentes de clubes de futebol do Rio fossem imediatamente presos, as injustiças cometidas seriam estatisticamente desprezíveis. Mas isto é só uma impressão, sem nenhuma base científica que a sustente). Não contratar parentes para cargos de confiança no serviço público me parece mais um bom conselho do que uma boa lei, do tipo não namore a secretária ou não vá a sala do chefe usando esta saia tão curta. Pode, mas é melhor não. Infelizmente a legislação não substitui o bom senso.


Em vista do exposto, peço que o senhor receba com atenção este rapaz que estou lhe encaminhando. Ele é meu sobrinho, filho do meu irmão Armindo e está precisando muito trabalhar. Se for possível que o senhor o libere na parte da tarde (ele está fazendo o cursinho) e nas terças e quintas pela manhã (ele é campeão guaicuru de gamão e precisa praticar) fico-lhe imensamente grata. E, por favor, agradeça a dona Iracema pelas guaviras e ao Terto pela passagem.


Dito isso, despeço-me com carinho.

PS. Você anda sumido: aguardo-o para uma das nossas tertúlias.


Em pé, os presentes todos aplaudiram dona Naná, elogiando-lhe a coragem por carta tão distinta e ousada. E ela saiu de perto comentando com seus zíperes: “Por aqui, tem muita gente querendo inovar. Autoridade constituída, dando emprego não só aos filhos, mas também aos tios, primos, sobrinhos e cunhadas, acabou por renovar um antigo provérbio. Ficou assim: ‘Mateus, primeiro, segundo e terceiro, os teus’”.

Nota do redator: É claro que a carta para o prefeito tinha algumas minudências diferentes. Por exemplo, agradecia a doutora Betty pelas porpettas, ao Sandrinho pelo cascalho na rua e coisas assim. Os nomes reais, claro, foram trocados. No essencial, porém, as cartas eram identicas.

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