segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

.::Candidatos double face

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O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não
fala, não enxerga, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que
o custo de vida, o preço de feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato,
do remédio, dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro
que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política. Não sabe o imbecil
que, da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior
de todos os bandidos, que é o político vigarista; pilantra e corrupto. O
analfabeto político é lacaio dos exploradores do povo.

O Analfabeto Político
Poema-crônica de Bertolt Brecht


Já dizia Niccolò Machiavelli que a virtú era a arma para sedução da Fortuna. O cônsul italiano acreditava, ao contrário dos romanos, que tal atributo não estava relacionado à virilidade —à força masculina, atributo do macho—, mas à sutil combinação entre a força e a astúcia. Mais que a força, a sagacidade de demonstrar —sem a utilizar— que a força é que marcava a vida dos grandes príncipes. Através desse caminho, muitos analistas atribuíram a Machiavelli a noção de que o critério para julgar uma decisão política é simplesmente o seu resultado ou a conquista do objetivo a partir da habilidade. O mundo da moral e o mundo da política estariam em dimensões distintas. Simplificando, a conhecida noção de que o fim justifica os meios.

Max Weber, autor de Politik als Beruf (A Política como Missão), retomou o dilema ao analisar a ética da responsabilidade, que envolve a ação dos líderes políticos. Um líder, argumenta o sociólogo alemão, é movido pela paixão, mas também possui equilíbrio. Antes de tudo, porém, é responsável pelas conseqüências das suas ações. Um dos corolários é que, para o governante, o que importa é a certeza do resultado.

A partir daí, muitos seguidores de Weber sustentam que a omissão é uma atitude plausível e justificável na ação responsável de um líder político. Conseqüentemente, nem sempre um líder pode ou deve dizer o que ocorre ou vai ocorrer, sob pena de estimular a disputa e trair os planos de Estado. Fugir à responsabilidade pelos erros dos subordinados é um exemplo disso —todos sabemos a confusão que dá.

Partindo-se do princípio de que essas concepções e orientações teóricas são absolutamente corretas, todos os candidatos a um cargo político com reais condições de vitória tenderiam a convergir para um discurso e práticas comuns, antecipando a ética de um chefe de Estado. Sabendo que poderiam ser eleitos e assumir um cargo público, tenderiam a ser cautelosos, adotar a responsabilidade do cargo e demonstrar possibilidades, mais que agir de maneira irrefletida. Ao contrário, um candidato sem chances de vitória poderia mostrar-se por inteiro, pender para atos mais agressivos e afoitos, pois estaria longe de praticar sua virtude.

Esta talvez seja uma explicação teórica plausível para o que acontece na campanha eleitoral deste ano. Por que, afinal, principalmente os candidatos presidenciais, ainda que não estejam claramente definidos quais são, se parecem tanto —fala-se dos presidenciáveis, mas isto é real aqui também— nas suas propostas? Uma boa explicação é justamente a real chance de qualquer um deles tornar-se o próximo presidente da República —ainda que hajam apenas dois realmente na disputa. Intuitivamente, percebem que o segundo turno das eleições já é uma certeza.

José Serra (PSDB), demonstram as pesquisas recém saídas dos fornos, está com jeito de garantir a cada dia que passa a sua vaga na finalíssima desta disputa. Dilma Roussef e Ciro Gomes disputam a outra vaga —agora com uma sólida vantagem para a Dama de Pedra—, de acordo com os levantamentos mais recentes. O trio de candidatos parece antever que, no segundo turno, haverá uma outra eleição, não havendo garantias sobre o resultado. Então, os três assumem uma postura prudente e cautelosa, insinuando que não romperão com o stabilishment. Mas esta hipótese não basta. Há ainda a possibilidade de Marina Silva, do PV, e Roberto Requião, mas por enquanto estes não contam. Requião, postula a candidatura dentro do seu partido, o PMDB.

Sabe-se que em momentos de forte crise social e/ou econômica, de insegurança total sobre o futuro, surgem lideranças políticas pouco racionais, da estirpe dos carismáticos ou dos demiurgos. Sigmund Freud escreveu, num artigo um tanto conservador, um texto sobre este fenômeno: em O Futuro de uma Ilusão, ele traça um paralelo entre a busca da figura do pai organizador e a busca das massas —quando mergulhadas no caos— da figura do líder aglutinador que guia a sociedade com uma promessa de triunfo. Um verdadeiro demiurgo.

A semelhança do comportamento dos três candidatos e o espaço insignificante e pouco legitimado de discursos mais arrojados na campanha eleitoral de 2010 parecem indicar uma percepção geral de que o país não está precisando de mudanças —não de mudanças profundas, embora muita coisa tenha mudado sob Lula da Silva. Isto poderia significar um sinal de avanço e de maturidade política da sociedade brasileira. Mas não é bem assim e esta alternativa também é insuficiente.

Outra hipótese plausível para a parecença do comportamento dos postulantes é o cenário econômico de 2011, que reduz o espaço de manobra do próximo presidente. Não estamos mergulhados no caos, porém estamos cientes de que não temos a garantia de um amanhã de crescimento e estabilidade. O fluxo de capital externo para as empresas instaladas no país é instável.

É claro que a instabilidade latino-americana, as crises da Argentina, Paraguai, Bolívia e a Venezuela (esta sob ditadura), além do Haiti, a quebradeira de grandes corporações norte-americanas, provocam enorme desconfiança nos senhores do capital. Concorrem para tanto, também, a diferença do dólar para o euro —como que demonstrando o esgotamento do crescimento dos EUA— e a crise dos balanços forjados pelas megacorporações norte-americanas —muitas das quais foram à bancarrota recentemente. Resumindo, o cenário do ano que poderá ser de grande aperto financeiro. Pior para nossa estrutura econômica.

Os três pré-candidatos, é claro, estão cientes de que não podem abrir muito o estoque de opções, sob pena de prometerem o que não poderão cumprir e ainda perderem, talvez logo nos primeiros dias de governo, a legitimidade que conquistarem nas urnas, diga-se de passagem modernas e eletrônicas, mas que provocam a desconfiança de muita gente.

Tem outra explicação plausível: o envelhecimento precoce de um sistema partidário que nunca foi dos mais sólidos e confiáveis. Deixamos um sistema bipartidário, imposto pelo regime militar instalado em 1964, para um sistema pluripartidário muito instável e fisiológico. Estudos e comentários científicos indicam que a exceção à regra era o Partido dos Trabalhadores. O PT teria, em resumo, as características clássicas de um partido político moderno: programa partidário para além do período eleitoral, organização burocrática profissional, bases sociais sólidas, militância atuante inclusive fora do período das campanhas eleitorais. O atraso petista está mais em seus militantes —mesmo aqueles dos mais altos escalões— do que propriamente da estrutura partidária, ainda que a agremiação tenha piorado depois de haver assumido o poder.

O resultado é que, nas eleições de 2002 —mais ainda na de 2006— já se percebia um decisivo desvio do PT na direção de uma intenção mais claramente eleitoral e menos mobilizadora —daí o afastamento da sempre presente militância petista. Para tomar esse desvio reforçou o marketing político, reduziu gradativamente seus pontos de atrito com a ordem social vigente e procurou ampliar seu público-alvo para os segmentos formadores de opinião.

Flexibilizou, portanto, seus vínculos com os movimentos sociais que lhe proporcionavam sustentação desde a sua criação, e assim deixou de lado muitos dos compromissos com a pauta política que esses movimentos elaboravam. Com o divórcio, o PT aproximou-se do padrão instável dos demais partidos políticos brasileiros. Sem o antigo poder de mobilização social —ou mesmo certa simbiose com tais movimentos— o cenário partidário ficou pasteurizado. Nas eleições deste ano, o que era apenas uma tendência, passou a ser uma marca: as alianças políticas são muito parecidas, sem a base histórica. O que vale não é a vitória, mas ganhar as eleições. Se alguém duvida disso, é só ver quem são os principais aliados da companheira Dilma Roussef na campanha que ainda nem começou oficialmente.

Todos sabemos, ainda que intuitivamente, que não são os programas e as propostas de governo que diferenciam os candidatos. Todos são muito semelhantes e o que os diferencia é o comportamento individual ou os traços de caráter de cada um. Os projetos ousados propalados no início do processo de redemocratização do país são substituídos, a partir de então, por ações espetaculares, de natureza midiática. É assim que se explica a importância cada vez maior dos trajes do candidato, da sua pele esticada, dos dentes alvejados ou do penteado de cabeleireiro, sua reação às provocações anunciadas, à capacidade de sorrir. São filigranas, pura cosmética, todos sabem, mas elas é que diferenciam o que é tão parecido.

Em resumo, nestas eleições de 2010, os candidatos estão mais uniformizados, mais digestíveis. A mesmice domina tudo e, mais que nunca, o divórcio entre padrão moral e padrão político é evidente. Com certeza estamos experimentando uma espécie de cultura pós-moderna na política. Os políticos demonstram que hoje estão cheios de argumentos e atitudes ambíguas, que podem tanto ser usados como contestação ou a favor do sistema, capuz para dias de chuva excelente para dias de sol. São candidatos double face...

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