quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

.::Vergonha é ser ignorante

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Por conta do Dia Mundial de Combate à Aids, fiquei lucubrando a respeito da motivação de profissionais de comunicação, principalmente jornalistas e publicitários, ao grafar a sigla aids com as letras ou com a inicial maiúscula. Expressei minha dúvida no Twitter e logo apareceu alguém que, presumo publicitário, explicando que "aids com a letra 'a' em caixa alta é um método visual de chamar atenção em produtos de mídia, e facilita a leitura cerebral". Ante a minha natural rejeição a tão estapafúrdio argumento, o moço ainda complementou: "depende da sua interpretação da frase, publicitários, designers e arquitetos também trabalham com o subconsciente da pessoa".

O ínclito "professor" comete algumas impropriedades em suas explicações. Primeira, e mais grave: subestima minha inteligência e meus conhecimentos de comunicação. Depois, fala em "leitura cerebral", uma obviedade escandalosa, visto que não existe outro órgão no corpo humano que leia, fato comprovado em 2006 por um grupo de cientistas franceses que conseguiu identificar a região do cérebro indispensável para a leitura e demonstrar a importância do inconsciente na percepção das palavras.

Aids é uma sigla —e siglas configuram uma região sombria do idioma português (e de outros idiomas também). Uma dessas confusões é confundir sigla com acrossemia, redução de uma palavra ou conjunto de palavras às suas letras ou sílabas iniciais. Há também a acrografia, que é a redução de uma expressão de duas ou mais palavras ao conjunto de suas sílabas (ou elementos fônicos) iniciais; e a braquigrafia, redução de um conjunto de palavras a uma só palavra, que combina o processo de acrografia com sigla, obtendo-se seqüência fônica aproximativamente enquadrada nos padrões fonológicos da língua em que são criados. Em todos os casos, grafa-se em caixa alta apenas a primeira letra —acrossemia: Petrobrás; acrografia: Sudene; braquigrafia: Funarte.

Acreossemia, acrografia e braquigrafia diferem-se claramente de sigla, que é a redução de um conjunto de palavras apenas às letras iniciais de cada palavra. Existem siglas que são apenas soletráveis, tais como CIA, KGB (que quase todo mundo botava no feminino, a KGB, quando deveria ser no masculino —e que está em desuso), cd, DNIT, STF etc. As que são referentes a nome próprios, devem ser grafadas em caixa alta. Há as siglas que são legíveis como palavras, tais como Vasp, aids, ONU, Sesc etc. Nestas pode ser usar a regra de grafar apenas com a inicial maiúscula as que têm mais de três letras e que são nomes próprios, com as letras em caixa alta quando são três ou menos letras e são nomes próprios.

Não há justificativa para se grafar com maiúsculas substantivos comuns —que, como se sabe, escrevem-se com minúsculas, inclusive a letra inicial— representados por bigla, trigla, sigla, acrograma ou abreviatura. Não se escreve Horse-Power (cavalo-força), Policial Militar, Compact Disc, Acquired Immunideficiency Syndrome, Human Immunideficiency Virus, Televisão (o receptor), Disc Jockey, Long-Play e tantas outras palavras e expressões presentes no nosso dia-a-dia.

Logo, não há justificativa para se grafar HP, PM, CD, AIDS ou Aids, HIV, TV ou Tv, DJ e LP, mas hp, pm, cd, aids, hiv, tv, dj e lp. “A quantidade de litros de capacidade de um motor tem pouco a ver com sua potência em hp”; “O pm surrou o bandido”; “O cd foi gravado com dinheiro do governo”; ”Pegou aids na suruba”; “Mais gente contaminada pelo hiv”; e assim por diante. O caso da aids é típico. Na imprensa escreve-se Aids ou AIDS, mas ninguém sai por aí escrevendo sarampo, caxumba, pingadeira, dengue, cólera etc., é ou não é? Siglas e acrossemias em geral criam dificuldades para leitores e espectadores, porque exigem ser decifradas.

Não sou um defensor implacável da rigidez gramatical; pelo contrário, aprendi escrevendo na mídia e, por isso, estou sempre buscando a simplificação, a clareza, a concisão e a exatidão. A linguagem, qualquer linguagem, é um meio de expressão e de comunicação, e como tal deve ser julgada exclusivamente. Penso que devemos respeitar algumas regras básicas da gramática para fugir dos desacertos mais evidentes —a meu ver, a maioria das regras deve ser esquecida ou automatizada a ponto de as usarmos sem perceber, isto é, com a mesmo naturalidade com que respiramos.

Há mais ou menos vinte anos Luís Fernando Veríssimo escreveu que “a sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo”. Na época, seus argumentos provocaram polêmica, mas não é difícil concordar com o escritor gaúcho.

Mas se as regras devem ser esquecidas ou abandonadas em favor das já citadas simplificação, clareza, concisão e exatidão, também não devemos abusar e partir para a ignorância sem peias. Foi o mesmo Veríssimo quem afirmou: “A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda”. Mas não devemos abusar da violência nas surras, pois podemos aleijá-la ou até matá-la. Portanto, perdão leitor pelos nossos erros.

“Ensinamentos” como os do meu "professor" tuiteiro são perfeitamente dispensáveis, pois quem não sabe, acredita. Preserve-nos da ignorância, professor... Talvez a gente deva andar com um Hoauiss debaixo do braço e sacá-lo rapidamente toda vez que alguém nos afrontar com a incultura. Em caso de dúvida, pergunte. Não é vergonha perguntar. Mas é vergonha ser ignorante.

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