quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

_Men in black

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Antigamente, eles se chamavam jagunços, cabeças-secas ou mata-cachorros. Eram poucos e tinham menos visibilidade; não eram figuras urbanas, mas rurais. Hoje eles são os guerreiros, mercenários da guerra civil não declarada que se trava no Brasil. São os rapazes de uniformes coloridos, em geral imitando policiais norte-americanos —também se vestem de ternos negros: são os homens de preto. Men in black.

Esses jagunços da era cibernética nunca estão sozinhos, sempre em grupo. Usam óculos escuros, falam em walkie-talkies ou telemóveis, ouvem através de pequenos fones presos nos ouvidos, todos de terno preto e camisa branca. São ternos mal-cortados e suados, camisas rotas e mal-ajambradas, gravatas pretas e mal atadas. Ou então vestem uniformes que imitam trajes militares, coloridos e espalhafatosos. Eles são verdadeiras réplicas vivas mal escanhoadas de cães de aluguel, tal e qual num filme de Quentin Tarantino. Os tais jagunços aggiornatti são os guarda-costas que protegem o rabo de quem tem medo, de quem tem o dito cujo preso. Quanto mais cagaço, mais men in black com olhar de pitibul encarando a gente, desafiadores, assustando qualquer um que cruze nos seus tortuosos caminhos.

Trabalham em empresas de segurança com nomes estrambóticos como Luger (o mesmo da pistola que se tornou um dos mais eloqüentes símbolos do nazismo) ou Swat (sigla inglesa de special weapons and tactics, ou armas e táticas especiais, um dos signos da violência policial oriunda dos EUA), Magnum, Repressão. Em seus uniformes coloridos, com seus ternos pretos, com seus carros de luzes coloridas piscantes no teto, ou seus caminhões fortes, eles parecem se sentir donos das ruas da cidade.

Segundo levantamento do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, existiriam 1.300 empresas de segurança privada e 500 mil vigilantes legalizados, no Brasil. Além destes, levantamento da Confederação Nacional de Vigilantes indica que existem cerca de 600 mil homens trabalhando clandestinamente em serviços de segurança privada. Quer dizer, um verdadeiro exército de mais de um milhão de soldadinhos de chumbo arrogantes e mal–treinados.

A proliferação destes serviços de segurança privada legal e ilegal aumenta o risco de ações violentas e contribui muitas vezes para o aumento do número de homicídios. Amigo meu conta que noutro dia um carro fechou o seu em uma avenida qualquer. Quatro caras vestidos de preto estavam dentro do veículo, os sentados no banco de trás estavam com os braços para fora da janela, carregando as portas debaixo do sovaco (uma característica de testosterona em busca de encrenca). Era uma van preta, reluzente, com os indefectíveis vidros fumê. Ele pensou com seus botões, instintivamente: “minha hora chegou!”. Naquele átimo pensou em alternativas de fuga, mas no meio daquele trânsito nenhuma lhe pareceu viável.

Ledo engano, entretanto. Alívio. O quarteto era os homens de preto de um carro estrangeiro que, com uma majestade impassível ia costurando faixas mais adiante. O solitário motorista dirigia displicentemente; uma mão ao volante, a outra segurando um celular grudado na orelha, alheio à sua derriére, que ele sabia bem protegida. Na tentativa de não perder o seu amo e senhor de vista, os quatro homens de preto quase provocaram um acidente. Aceleraram, brecaram, arrancaram e partiram (olhos faiscando, sovacos vertendo suor), cantando pneus, atrás do seu dono.

Não era oficial o carro de sua excelência —logo, os jagunços também não. Por que teriam o direito de se achar com a preferência naquele trânsito? E os oficiais podem? Se o bacana no seu BMW (que o vulgo no Brasil teima em chamar de beemedabliu) estivesse sem guarda-costas, ele (ou eles) se sentiria tão impune? Quando não estão fazendo estrepolias nas ruas, os meninos da segurança privada estão com seus caminhões de transportar dinheiro estacionados em fila dupla em vias de grande movimento, mesmo que tenham áreas reservadas para parar.

Não precisa ter lá grande poder para se sentir como um senhor da guerra medieval —basta ter bufunfa no banco para bancar o sistema. Aliás, andar com os men in black hoje em dia passou a ser sinal de status. Como nos filmes de capa-e-espada, o sinhô vai de um ponto a outro protegido pela matilha, com o olhar perdido no horizonte enquanto atrás dele vêm os cães de aluguel fazendo com que todo mundo se aparte. Eles mantêm à distância a patuléia armada do andar de baixo —e que muitas vezes também se arvora da mesma arrogância, mas por outros motivos.

Tais como samurais do asfalto, os homens de preto se sentem protegidos pela impunidade do bwana que os contrata. E são invisíveis, porque todos fingem que não os vêem —por isso se sentem acima das regras que regem as vidas dos outros mortais. São os acessórios de um poder encurralado que se esconde no carro blindado, atrás do vidro fumê, das cercas eletrificadas, micro–câmeras de tv escondidas, ou do arame farpado, —mesmo arame farpado que se vê nos campos de batalha—, porque o Poder Público em quase todo o mundo não consegue impor a segurança para a sociedade —e olhe que o cidadão paga rios de dinheiro em impostos para isso.

Os homens de preto são, também, o reconhecimento de um medo e, quem sabe, da culpa de uma sociedade que se isola mais, se escondendo da patuléia esfaimada do porão, cercados por grades e mini–câmeras de tv —verdadeiras prisões de luxo. Teoricamente, segundo a clássica definição de Max Weber, o Estado é o detentor do monopólio da violência legítima dentro de um determinado território. Desde que os cidadãos abdicaram de seus “direitos naturais” em favor do Estado, somente ele tem o poder e o dever de zelar pela segurança externa e interna, policiando, julgando e punindo os infratores da lei.

Julgar e punir criminosos ainda é monopólio estatal em quase todos os países civilizados, não obstante a freqüência das tentativas populares de "fazer justiça com as próprias mãos”, quando avaliam que o Estado atua de maneira ineficaz. Ainda que existam, na prática, atividades como linchamentos, vigilantismo, violência policial e esquadrões da morte são ilegais, mesmo contando não raramente com a aprovação popular quando as vítimas são "criminosos".

O poder de polícia, por outro lado, vem deixando há várias décadas de ser um tipo de atividade monopolizada pelo Estado. Neste setor está ocorrendo uma erosão do monopólio público, provocada tanto pelas iniciativas comunitárias de autodefesa —do gênero neighborhood watch— como, principalmente, pela expansão das atividades da indústria da segurança. Hoje a função de policiamento é repartida entre o Estado e a sociedade, e esta última vem adquirindo cada vez maior proeminência —daí as Luger e as Swat da vida.

Em diversos países do mundo, desde os anos 1970, o número de vigilantes privados superou em quantidade o de policiais treinados e pagos pelo Estado: nos Estados Unidos, por exemplo, existiam, em 1990, cerca de três vezes mais seguranças particulares (dois milhões) do que policias, estimados em 650 mil. A projeção norte-americana é de que na primeira década do século 21, que termina o ano que vem, os agentes de segurança particulares cresçam anualmente ao dobro da taxa dos policiais. Na Inglaterra e no Canadá a situação é a mesma: existem duas vezes mais seguranças particulares do que policiais e a taxa de crescimento do setor privado é mais rápida do que do setor público. Os dados existentes para São Paulo revelam uma tendência parecida. Em todo o Estado existem cerca de 400 mil vigilantes privados, em comparação com 120 mil policiais civis e militares, numa proporção de 3,3:1.

Nem por isso a vida do moderno centurião é fácil. Os seguranças, os vigias, os modernos jagunços da era da informação ficam na frente das casas ricas, com arquitetura esmerada, sentados em móveis desprezados, muitas vezes com uma cuia de tereré nas mãos. Acontece que os homens de preto são a prova de que essa proteção inicial, individualista e paralela à de um Poder Público insensível, não deu certo. E é o testemunho de que eles também não darão. Porque o remédio para a insegurança é outro. Mas esta é outra história. Ou outras histórias.

Mesmo assim, até moradores de bairros de classe média baixa estão contratando seguranças para vigiar a quadra da rua em que moram. Observe: embora seja uma atividade ilegal, começam a espalhar-se pela cidade guaritas ocupadas por guardas privados —geralmente gente de máfias formadas nos bairros mais pobres da vizinhança. Antes, apenas condomínios e estabelecimentos comerciais contratavam seguranças. Tratava-se, em essência, de proteger prédios particulares. Agora são ruas, bens de uso comum do povo, que passam a ser objeto de vigilância particular.

Um horror. Está na hora de pensar que não é porque come pedra que a galinha bota ovo inquebrável.

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