quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

[Doutor da mula ruça]

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Projeto de Lei Complementar da lavra do presidente do Legislativo Municipal de Campo Grande, médico e vereador Paulo Siufi (PMDB), e aprovado na última sessão de 2009, estabelece limites à exibição de produtos eróticos e pornográficos na Capital. "A proposta —segundo a Assessoria de Imprensa da Câmara de Vereadores— assegura que os estabelecimentos comerciais, que exibem e comercializam produtos e materiais eróticos e pornográficos, deverão adotar medidas restritivas à visualização dos mesmos (sic), exclusivamente ao público específico".

Reza o projeto que é proibida a exibição pública de qualquer coisa que possa ser considerada pornográfica, sabe-se lá por quais critérios. Propaganda pública e privada, inclusive na tv, vitrinas e interiores de lojas (inclusive lingérie), outdoors, obras de arte, bancas de revistas, livrarias, estátuas em praças públicas. Enfim, censura completa.

Segundo o doutor, a proposta visa preservar a moral e os bons costumes da família campo-grandense. “A pornografia sem controle e apresentada a pessoas ainda imaturas, como crianças e adolescentes, reflete em comportamentos sexuais difíceis de serem controlados por pais e educadores, ocasionando a diminuição da idade para o início das atividades sexuais”, especula Siufi. Pelo que dá pra entender, na opinião do doutor as escolas deveriam eliminar o ensino da educação sexual às crianças. E se os pais não controlam, as autoridades vão controlar.

Falar em pornografia requer uma certa dose de audácia. É ousar invadir o espaço do proibido e violar o segredo. De cara uma questão se coloca, como se fosse uma arapuca: afinal o que é pornográfico e o que é erótico? Farinhas do mesmo saco? Ou a distinção pressupõe a separação do joio do trigo? Ou estão confundindo alhos com bugalhos?

Pornografia, a palavra, vem do grego pornographos, que significa literalmente estudos sobre prostitutas ou prostituição. Trocando em miúdos, pornografia refere-se originalmente à descrição da vida, dos hábitos, dos usos e costumes das prostitutas e, claro!, dos seus clientes. É provável que, por isso, tenha chegado a significar a expressão ou sugestão de temas obscenos nas artes. Erotismo, por sua vez, surgiu no século 19, a partir do adjetivo erótico, derivado do grego Eros, o deus do desejo sexual.

De maneira geral, se não quisermos simplesmente reproduzir o chamado discurso do senso comum, é bastante difícil traçar limites entre o erótico e o pornográfico. Talvez a melhor definição seja a de Alain Robbe-Grillet, um dos principais autores do nouveau roman francês: "pornografia é o erotismo dos outros".

Uma coisa, porém, é certa: seja pornografia ou erotismo, a característica principal desse discurso é a sexualidade. Espera-se até que ele tenha propriedades afrodisíacas, isto é, que provoque a libido dos seus usuários. Estamos, portanto, em pleno território da obscenidade. Aliás, obsceno ajuda a esclarecer algumas coisas: este é algo que deve ser escondido, que deve estar fora de cena.

E é aqui que encontramos o sentido da pornografia, se compreendida como veículo do obsceno, isto é daquilo de que deveria ser escondido, mas é mostrado escancaradamente —a exibição do indesejável: o sexo fora do lugar, o espaço do proibido, do não-dizível, do censurado, daquilo que não deve ser, mas é. Colocando lado a lado o escândalo e a virtude, a pornografia grita e sussurra. É nesse jogo de esconde-esconde que se encontra o seu sentido, mas é também por causa dele que se torna difícil defini-la.

Vai daí que o terreno no qual se lança é pantanoso o suficiente para que nos previna com um pouco de lucidez para não cair na primeira armadilha, que é defini-la através dos critérios morais. Ao contrário, a intenção é expor a pornografia, pensá-la nas suas várias formas: nua e crua ou rebuscada e filigranada. Nessa aventura — a de delimitar um possível universo da pornografia— fica o convite para o gentil leitor participar —nas entrelinhas, nos espaços, nas margens, com palpites, opiniões e segredos sobre o prazer.

Pode-se pensar em duas formas de definir a pornografia, sabendo que ao morder a maçã corre-se o risco de pecar, mas assumindo que ela sempre vale a pena. Vamos lá: essa afirmação pode parecer bastante extravagante, sobretudo se se levar em consideração que se trata de dizer o que é a pornografia. Cumpre apontar algumas razões deste não-ser, e já de cara adianta-se que neste momento estamos vendo a pornografia enquanto um fenômeno ao qual a sociedade confere um valor. Interessa-nos aqui a forma como é falada e traduzida no espaço público.

A primeira destas razões pode ser encontrada no fato de que a pornografia só pode ser definida fora dela, a partir do que é exterior a ela e nunca de um espaço que Ihe seja próprio. Se se puser a lembrar de tudo o que já se ouviu classificado como pornográfico, se verá que a pornografia é sempre evocada para qualificar os outros, e nunca a gente.

Ou seja: a exemplo da felicidade —estranha coincidência?— ela sempre está onde nós a pomos, e nós nuca a pomos onde nós estamos... A segunda razão que sugere a existência negativa da pornografia é a própria relatividade deste conceito. Sabe-se muito bem que aquilo que uns consideram pornográfico, não é para outros, e aí pesam não só as diferenças históricas, étnicas, ou culturais, mas também as subjetivas e individuais.

A variabilidade dos critérios que julgam que algo —um livro, uma estátua, um anúncio etc.— é ou não é pornográfico é tão grande que além da referência geral à sexualidade, pouco mais pode se dizer deles. Por exemplo, vários livros que hoje são considerados grandes clássicos da literatura, antes foram acusados de obscenos e proibidos sumariamente.

Este pêndulo imprevisível que é a censura oscila conforme ventos e tempos, ceifando algumas cabeças, resgatando outras. Uma leitura tendenciosa pode encontrar a pornografia até em livros, imagens e esculturas religiosos: os capítulos 16 e 23 do livro de Ezequiel da Bíblia Sagrada são claramente obscenos. O conceito de pornografia é tão pouco claro que resulta inclusive em equívocos bizarros como este: em 1898 um livro é apreendido pela alfândega inglesa e sua tiragem é destruída: "A Violação de Nossas Costas", um trabalho técnico sobre erosão do solo!

Chega-se ao ponto crucial: se a pornografia não é, uma coisa é clara: sem dúvida ela está. Está nos livros e revistas eróticas, nos filmes, nas telenovelas, nos palavrões, nos grafitos dos banheiros, nas ruínas de Pompéia, nos gracejos de rua, nos outdoors, nas cartas de baralho, e nas cabeças das pessoas. As lojas de produtos eróticos, as sexshops, por exemplo, não exibem as genitálias em suas vitrinas; os urologistas, entretanto, exibem falos em seus consultórios e clínicas —o prefeito do Campão Nelsinho Trad usa um pênis estilizado a guisa de logomarca de sua clínica. Se não dá pra defini-la, encontrá-la não é nada difícil.

Há um lugar ocupado pela pornografia. Melhor dizendo, ela está num determinado lugar de onde fala, anunciando sempre, simultaneamente, a sua presença e a sua ausência. Porque talvez a única forma de definirmos a pornografia seja dizendo que ela é um ponto de vista, não um ponto fixo, mas tão móvel que sugere a todo instante verdadeiras ilusões de óptica. Nesta fluidez, apenas uma constante: o lugar da fala que diz a pornografia é o lugar da sua ausência. Por isso mesmo, falar de pornografia é falar de sua contrapartida, oposta e inseparável: a censura.

Com relação ao doutor Siufi, que se traveste de guardião da moral morenopolitana, fica a pergunta: como será o seu comportamento sexual e erótico? Ao tentar transformar em lei seu moralismo barato, ele demonstra claramente que certas decisões do legislativo, tomadas quase que às escondidas, só poderiam ser exibidas para maiores. Só pra concluir: será que o doutor Siufi vai proibir o seu primo prefeito e também doutor Nelsinho Trad de exibir publicamente a logomarca da sua clínica de urologia? Será a tal logomarca, que representa um falo estilizado, pornográfica?

Sempre existe espaço para o leitor examinar a vida e a cama dos outros e, quem sabe, mergulhar no interior de si mesmo. Com sorte, dá até para avaliar, ao fim e ao cabo, o próprio erotismo. Apenas é preciso ter uma visão mais aberta sobre a questão, caso contrário caímos no velho mote de que pornografia é tudo aquilo que excita os moralistas, ou falsos moralistas. Em matéria de (falso) moralismo, Siufi se comporta como o "doutor da mula ruça".

3 comentários:

Unknown disse...

Esses vereadores são inúteis mesmo... e covardes. Olhem direito o SBT, a globo, a Record, a Band... a maioria dos programas tem peitões e bundões, mylheres seminuas... dramas sobre traição, sacangem, sexo. Avisa ele q pornografia existe é no poder público, na Câmara, Assembléia, judiciário... as mirins é que sabem quantas cantadas levam por dia dos velhacos do poder... Porque esse inútil não cuida da corrupção que está debaixo do bigode escroto dele!?!?!

Carlos Kuntzel disse...

Sempre achei o blog um espaço inteligente, mas na realidade é só espaço... pois as pessoas que fazem uso dele são confusas, estranhas e querem ganhar visibilidade a qualquer preço, mesmo que seja ofendende pessoas. Ridículo

Unknown disse...

Sr. Kuntzel. Seja mais específico e diga quais são as pessoas que fazem uso dos blogs "que são confusas, estranhas e querem ganhar visibilidade a qualquer preço", quem ofende pessoas. E o que é "ridículo"...