segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

_[Domingão no Campão]

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Domingão, dia de ir almoçar fora com a família, o que geralmente é atraso de vida. O consenso familiar (na verdade foi uma decisão autoritária do patriarca ou da matriarca) decidiu que todos iriam para uma churrascaria. Depois de passar longos minutos na fila de espera na calçada, ao sol do meio-dia (sim, ao sol, porque os donos dos restaurantes morenopolitanos ainda não descobriram uma forma de deixar as pessoas esperando com mais conforto quando o estabelecimento está lotado), todos entram driblando o labirinto de mesas.

Imagine a cena: um grande salão, lotado de homens maduros, alguns bem barrigudos (os papais), senhoras de cabelos cuidadosamente penteados e trajes jecamente domingueiros (as mamães), rebeldes com ou sem causa (os filhinhos) e as perdições dos papais, com piercings, calças Saint Tropez (era assim que eram chamadas as calças de cintura baixa na década de 1960) ou saiazinhas vertiginosamente curtas (as filhinhas).

É nesse caótico salão, com papais, mamães, filhinhos, filhinhas e eventuais bebês e babás, que ficam circulando apressados homens e mulheres vestidos geralmente de branco e preto ou aventais promocionais, empunhando pratos, copos, bandejas e, principalmente, facas afiadíssimas e espetos pontudos, onde estão traspassados músculos e vísceras de mamíferos, roedores, aves ou peixes —e outros animais: aqui é possível encontrar até jacaré (o rabo do dito cujo) ou pernil de javonteiro (que bicho é esse, deus meu?!) assados. Sem contar algumas frutas e outros vegetais que também são aguilhoados por espetos.

Assim descrito pode parecer muito estranho, mas essa é uma das maiores paixões do povo brasileiro, o rodízio. O morenopolitano —e o brasileiro de modo geral— adora essa comilança rotativa e apressada chamada rodízio. O Houaiss define a modalidade como “sistema de serviço de certos restaurantes em que o freguês, pagando um preço fixo, pode comer a vontade as diversas especialidades que a casa oferece”. Mas se a gente refletir um pouco mais verificará o quanto é louco e sem sentido um rodízio de carnes. Garçons e garçonetes correndo pra lá e pra cá, cortadores com seus facões retalhando nacos de dos mais diversos tipos de carnes bem ou malpassadas, gordas ou magras, tenras ou duras —geralmente espirrando sumos, molhos e gorduras pra todo lado.

Quando se comenta sobre os rodízios —tem rodízio de salada, de peixe, de sorvete e, pasme!, de pizza, bobagem que o morenopolitano adora— com estrangeiros, verifica-se as mais curiosas reações: alguns imaginam que o boi (ou vaca) vem inteiro, outros acham maravilhoso; a maioria, porém, acha muito insólito, principalmente quando se fala de coração de galinha. Aí todos esbugalham os olhos. Agora pense: coração de galinha! É um tanto primitivo, meio neandertal.

Coração de galinha parece coração de gente, só que muito menor. É tão pequeno que o glutão tem de comer vários para se satisfazer, e assim de coração em coração as galinhas vão desta para melhor para satisfazer a gulodice dos comensais. Tem tanto coração de galinha nas churrascarias, que fico imaginando se eles não são produzidos em série a partir de células-tronco. Geralmente, esses músculos cardíacos de galináceos são servidos bem passados, quase torrados, bem salgados e passam por hors d’oeuvre —dos quais não se espera que sejam particularmente nutritivos, mas que excite o aparelho digestivo, que o torne exigente, e que aguce o apetite— para as carnes ditas mais nobres. Como aguçar, porém, o apetite olhando e deglutindo aqueles coraçõezinhos inertes, escuros, torrados, salgados? Tem gente que morre de pena dos franguinhos e galinhazinhas sem coração.

Mas tudo bem, rodízio também é alegria. Cada vez mais os garçons de sobremesa, licor e outras bebidas alcoólicas estão se tornando verdadeiros showmen —sim eles dão um show à parte, com direito a causos, piadas, imitações e trejeitos malabarísticos com pratos, talheres, copos, garrafas etc. Com isso está se enxergando a situação de quanto está se tornando difícil —e fácil também— ganhar dinheiro no Brasil.

A parte fácil é a seguinte: independente do que o cidadão exerça, seja inovador, essa tem sido a fórmula do sucesso. Agora a parte difícil é que, além de sujeito exercer o duro ofício de garçom, tem de ser também um clown, humorista, imitador, equilibrista, malabarista, maluco etc. para fazer sucesso e se destacar (e ganhar o salário de garçom). Mas, apesar de tudo, o rodízio continua sendo uma beleza, valendo a pena em cada real: afinal não é uma mera refeição, mas um espetáculo da glutonaria.

A coisa toda começa com a refeição antes do cidadão e sua família irem para a churrascaria —ela não existe, pois todos já estão reservando espaço no aparelho digestivo para a carne. Depois todos se sentam no meio-fio, na calçada, no degrau da escada ou na mureta em frente, pois, como foi dito, o rodízio é uma preferência nacional e, claro, o restaurante está sempre cheio! Depois que se sentam à mesa, todos comem aquelas chipas, amendoins, torradas, patês e vai atiçando a fome dos membros do seu entourage.

De repente, de longe, você a vê e tudo parece parar. É seu maior objeto de desejo no rodízio. Ela está molhadinha, quentinha, esperando sua boca abrigá-la —ela é a mais desejada do recinto, mas naquele momento só existem você e ela. Apesar de você já haver visto várias, deglutido centenas delas, ela é a mais espetacular, estonteante, saborosa, suculenta e gordinha picanha que seus olhos jamais viram.

Depois do primeiro encontro com a picanha você e sua família só querem saber de mais. Abre-se o sinal verde e todos partem pra ignorância, até não agüentar mais: picanhas, filés, alcatras, cupins, lingüiças, pontas de costelas etc. etc., que se cuidem. Após tudo isso, você e os seus beliscam uma torta holandesa, toma um café expresso, dá uma bicada no licor e vai pra casa feliz, se sentindo uma sucuri depois de comer três antas de tênis, mostrando para todos que você come mesmo e, ainda por cima, se orgulha disso, mostrando de forma (arredondada) que isso não te afeta e que seu estomago é um praticamente um contêiner —e dos grandes.

Concluído esse show de horror, você volta para o recesso do lar, assiste o futebol, xinga o juiz, briga com a mulher (afinal domingo é dia de ficar com a família e de não assistir futebol!), vê o Domingão Faustão, ri das videocassetadas, baba vendo a Patrícia Poeta no Fantástico (enquanto a patroa geme pelo Tadeu Schmidt ou pelo Zeca Camargo). E, fechando com chave de ouro, você dá um beijinho na sua patroa (faz as pazes e garante que na semana que vem vai ser diferente), deita a cabeça no travesseiro (não sem antes dar uma olhadinha numa mesa redonda de futebol qualquer) e pensa com seus zíperes: minha vida é massa! O que faz a gente deduzir que a classe média é uma instituição que não sobe nem desce, não concede, não sai debaixo nem desocupa a moita... E lota os rodízios aos domingos.

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