quinta-feira, 29 de outubro de 2009

_Leis demais punem de menos

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Nós, seres humanos, somos animais sociais —no sentido de que somos um agrupamento de seres que convivem em estado gregário e em colaboração mútua; não somos os únicos (vide abelhas, formigas e outros que tais), mas somos aqueles que têm a exclusividade do livre arbítrio e usam leis não naturais para ditar as normas de comportamento coletivo. Para estabelecermos essa convivência criamos regras e regulamentos que convencionamos chamar de leis.

Começou com Hamurabi com seu olho por olho, dente por dente..., depois veio a política de Platão, o direito romano, o estudo da moral (das inúmeras correntes filosóficas), Jesus, Buda, Maomé e suas religiões, as cortes francesas e as aprimoradas etiquetas, Gandhi com o pacifismo, a lei do Ventre Livre, a constituição de 1988 (e suas inúmeras emendas) e até as regras do condomínio são algumas tentativas de transformar esses seres humanos em animais um pouco mais domesticáveis.

Hoje estamos muito distantes daqueles primórdios da humanidade em que nós, homo-sapiens, éramos pouca coisas mais civilizados que um bando de orangotangos. Evoluímos muito a partir das leis das selvas —mas ainda nos deixamos levar pela regra que diz que o mais forte sobrevive subjugando o mais fraco: por isso estamos sempre resolvendo boa parte dos nossos conflitos na porrada. Temos direitos iguais, oportunidades iguais e respeitamos nossos companheiros. Pelo menos é o que está escrito durante milênios de aprimoramento das relações sociais civilizatórias —mas em todo lugar tem aqueles que são mais iguais do que os outros.

Para nos abordar, enquadrar, jungir, censurar, confinar, iludir, agrilhoar, conquistar, enlouquecer, tungar, foram escritas leis federais, estaduais, municipais, paroquiais, rurais, locais, marginais; com as quais avançam nos nossos bolsos o presidente da nossa República, o governador do nosso Estado, o prefeito da nossa cidade, o segurança do nosso escritório, o síndico do nosso prédio, o guarda da nossa praça. Quando Hamurabi criou o primeiro código de lei não melhorou em nada o comportamento humano e, ainda por cima, inventou a ilegalidade, até porque toda a punição é maldade —toda a punição em si é má. E também o advogado, o juiz e promotor.

A lógica diz que quanto mais leis mais crimes. A frase pode parecer óbvia para alguns, absurda para outros tantos; mas espelha a realidade na medida em que nossas leis surgiram de preceitos morais religiosos. Veja-se as cinco proibições fundamentais dos chamados Dez Mandamentos, utilizados por inúmeras religiões e seitas ocidentais: as que se referem a matar, roubar, cobiçar, prestar falso testemunho e cobiçar a casa (e tudo o que tem dentro dela, inclusive a mulher) do próximo, que podem ser encontrados em quase todos os sistemas morais conhecidos e aceitos por quase todas as sociedades humanas, mesmo as orientais.

Na hora de punir, as questões morais têm grande peso, um peso maior do que o próprio direito e a própria Justiça. No Brasil, por exemplo, as situações em que um indivíduo mata seu semelhante e é considerado inocente são mais comuns do que aquelas em que é declarado culpado —e mesmo estes acabam ficando muito pouco tempo atrás das grades. E é assim mesmo ou pior em todas as outras quatro situações. O roubo e a corrupção, por exemplo, têm nuances tão variadas que não podem ser expostos sem que se esgarce irremediavelmente todo o tecido social, sem que desmorone todo o edifício político.

Os fundamentos da moral, que ditam a criação das leis, são basicamente os mesmos em toda parte, com pequenas variações. Mas a moral, como a teologia, se presta a acréscimos, decréscimos, remendos (e sonetos) e emendas. Há não muito tempo, não mais que dois séculos, por exemplo, eram permitidos casamentos entre crianças e entre adultos e crianças; também o conceito de que é pecado beber mudou muito: há não muito tempo a bebida fazia parte dos rituais religiosos —não é à toa que em inglês as bebidas alcoólicas são chamadas de spirits (em português espírito também significa bebida, mas o termo caiu em desuso: ninguém sai por aí dizendo que vai beber um espírito). E em algumas religiões o uso do álcool ainda perdura: os padres católicos continuam bebendo vinho durante a missa. Hoje, essas práticas são cada vez mais execradas e punidas.

Criamos uma civilização cercada, por todos os lados, de regras e regulamentos, extremamente punitiva, mas cada vez mais nossos prepostos, ou seja, políticos, governantes e outras autoridades civis, militares e eclesiásticas, têm menos capacidade para punir os excessos, tanto coletivamente como individualmente. Certamente nossa civilização vai ser melhor se usarmos menos moral e mais ética para compormos nossas leis. Hoje temos leis demais que punem de menos. Há tantas leis que é impossível que alguém as conheça todas —estávamos melhor na antiguidade: digam o que quiserem sobre os Dez Mandamentos, mas devemos ficar contentes por eles serem apenas dez.

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