domingo, 19 de julho de 2009

_Toque de acolher

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“Campo Grande precisa de um toque de recolher. Acredito que é interessante porque as famílias perderam o controle dos seus filhos. Eu trabalho pela família”. Pode parecer brincadeira, mas esta frase aí é do presidente da Câmara Municipal de Campo Grande, Paulo Siufi, que, além disso, é médico pediatra e apresentador de um programa numa emissora de tv local.
A afirmação de que as “famílias perderam o controle dos seus filhos” configura, no mínimo, uma afronta agressiva aos pais de família de Campo Grande. Quais são as famílias que não exercem o pátrio poder sobre suas proles? Ele, que é casado e tem três filhos, se inclui entre essas famílias descontroladas?

Desde que um juiz da cidade de Fernandópolis (SP) decretou o toque de recolher na sua jurisdição o assunto se tornou moda nacional. O também denominado recolhimento obrigatório nada mais é do que a proibição, decretada por uma autoridade competente, de que as pessoas permaneçam nas ruas após determinada hora, individual ou coletivamente, de sorte que aquele que desobedecer aos mandamentos impostos pode ser detido e penalizado.

Diz-se que o toque é uma medida de segurança pública e garantia da ordem civil, podendo ser usado, também, como método de repressão política. O nome deriva essencialmente da prática européia, na qual o toque de uma sirene sinalizava a necessidade de recolhimento dos cidadãos.

Aconteceu principalmente durante as guerras: exemplo clássico de seu uso deu-se na Alemanha nazista, entre 1933 e 1945, em que se limitava a liberdade deste ou aquele grupo de cidadãos, mas principalmente judeus, ciganos, católicos, comunistas e outros menos voltados. Existem, entretanto, vários outros exemplos. No Brasil, atualmente, muitas cidades aderiram à idéia. E Mato Grosso do Sul, com irrisórios 78 municípios, já é o Estado em que tem mais cidades que adotaram o toque de recolher: quatro entraram até agora nessa onda fascistóide.

Sem discutir a questão legal, a pergunta que se faz é a seguinte: é possível restringir direitos constitucionalmente assegurados às crianças e aos adolescentes, tendo como fundamento uma genérica e imprecisa política de segurança pública visando reduzir a criminalidade? Noticiário a respeito do assunto afirma que toque de recolher reduziu a violência em Fernandópolis e outras cidades pequenas. Entretanto, não seria mais adequado estabelecer um toque de acolher para essas crianças e adolescentes como forma de combater a criminalidade infanto-juvenil?

O que seria esse toque de acolher? A população jovem encontra-se em pleno desenvolvimento e a adoção do recolhimento obrigatório, afora o nítido cerceamento do direito de liberdade, fere os princípios da dignidade, do respeito, e do desenvolvimento da pessoa humana. Embora tais direitos não sejam absolutos, podendo ser limitados justamente em vista da proteção integral das crianças e adolescentes, o certo é que o caso não é de limitação válida. Seria melhor que fossem acolhidos e amados por pais relapsos e displicentes.

Deve-se ter em mente que o recolhimento obrigatório não pode ser arbitrariamente instituído com base simplesmente num suposto "interesse público". Tentar suprir a ineficiência estatal no combate à delinqüência com a restrição de direitos das crianças e adolescentes é, de fato, uma forma infundada de prover a segurança pública. E com um agravante no caso de Campo Grande: se a polícia não tem efetivos nem pra dar conta da bandidagem comum, vai conseguir ainda ter de tomar conta de crianças e adolescentes da cidade? Missão impossível.

Ademais, estará se punindo ou colocando sob suspeita todo o segmento de jovens (todos são colocados num mesmo plano... e o mais baixo), sendo que apenas uma minoria pratica atos infracionais e necessita de uma atenção especial. Por outro lado, diversos problemas geradores de conflitos e violência decorrem de atos praticados no interior da casa (e não nas ruas) pelos próprios pais. Neste caso, indaga-se: por que não instituir o toque de recolher em relação aos pais que ficam nos bares ao invés de dar atenção à educação dos filhos? Que tal proibir pais e mães de ficar até tarde nos bares e botequins, lupanares e bordeis, casas de tavolagem, danceterias, clube de suingue etc., que existem em abundancia na cidade?

O certo é que não se pode haver a pretensão de se instituir, por meio do direito punitivo, uma sociedade sem crime ou violência, já que se instalaria o mais tenebroso totalitarismo, uma sociedade policialesca de submissão total. Deve-se, ao contrário, instituir políticas públicas em prol da melhoria de qualidade de vida e da busca pela paz direcionada aos infratores ou crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal, e não de forma genérica. O direito punitivo emergencial, embora muitas vezes sedutor, não é o meio mais adequado para a pacificação social.

Cabe ao Estado executar as políticas públicas de forma eficaz, não se limitando a recolher o público infanto-juvenil da rua, mas também apóia-lo, curá-lo, identificar as causas que motivaram o enfrentamento dos perigos das ruas, não esquecendo de cuidar da família, sem a qual todo o trabalho realizado se mostrará inócuo.

Em suma, se é certo que ao Poder Público incumbe garantir a primazia dos direitos fundamentais infanto-juvenis, não há como aplaudir a implantação do toque de recolher. Aliás, é fato que em tais cidades não ocorre o atendimento integral da população na educação infantil. Nenhuma das cidades que adotaram o toque de recolhger atenderam o Plano Nacional da Educação que determina como meta para o ano de 2006 atender 30% da população de crianças nas unidades de creche e estão longe de atingir a meta prevista para 2011 que é atender 50% das crianças. Se se pretende combater a criminalidade e a violência, não seria mais adequado investir na educação cumprindo o que estabelece o PNE?

Dá pra notar que o recolhimento obrigatório não é a medida mais adequada para se combater à delinqüência juvenil, visto que restringe direitos constitucionais das crianças e dos adolescentes e não ataca o foco principal que gera tal insegurança. Mas voltemos ao doutor Siufi. Para ele, o toque de recolher irá reduzir o número de acidentes de trânsito e o uso de bebidas alcoólicas por adolescentes. Nas cidades onde o toque de recolher foi estabelecido, os juízes afirmam que houve redução evidente na criminalidade, mas não apresentam dados que comprovam isso.

Existe em campo Grande algo em torno de 240 mil pessoas com idades de zero a 17 anos (os menores de idade). Não disponho de estatísticas que abonem minhas lucubrações, mas não creio que haja mais de dois mil crianças e adolescentes infratores na cidade; dois mil significa menos de um por cento desse segmento da população. Entretanto, o doutor Siufi e outros pretendem nivelar por baixo e penalizar de forma cruel mais de 99% de um segmento mais que importante da população da cidade, na vã suposição de eles podem provocar acidentes de trânsito ou praticar crimes. Não sei como o ilustre pediatra e vereador cuida da sua prole, mas sua argumentação nos leva a inferir se ele não será um desses que “perderam o controle dos seus filhos”.

Alguns veículos de comunicação da cidade andaram fazendo enquetes e descobriram que tem muita gente do lado do doutor Siufi, inclusive alguns adolescentes. Há uma maioria silenciosa favorável ao toque de recolher. Pode-se notar nisso a cumplicidade do silêncio passivo, que configura a incapacidade estrutural de se incomodar com os outros, de se revoltar com as injustiças que se vêem ao lado, de questionar os porquês. Isso tudo traduz-se em aceitar o factum desde que não atinja os privilégios ou ameace a tranquilidade das boas consciências.

Num pequeno poema que ficou muito conhecido nos anos 1970, Bertolt Brecht, o grande dramaturgo alemão, disse: “Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso. Eu não era negro/Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso. Eu também não era operário/Depois prenderam os miseráveis, mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável/Depois agarraram uns desempregados, mas como tenho o meu emprego também não me importei/Agora estão a levar-me, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.”

O doutor Siufi acaba se comportando como a maioria dos políticos: está sempre dissociado das reais necessidades da população, mas quando se depara com uma questão em que a sociedade adere de modo imediatista a um apelo dramático, acaba ficando do lado do povo por puro oportunismo. A Câmara Municipal, presidida hoje pelo doutor, promete audiência pública para discutir a questão. Precisamos todos discutir o assunto seriamente, sem paixões e sem preconceitos contra os jovens. Se permitirmos que eles adotem o toque de recolher, nunca mais vão nos soltar —mas se a gente implorar, talvez todos os anos eles coloquem mais um elo na corrente. Mas quem se importa?
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2 comentários:

Anônimo disse...

o toque de acolher é necessario sim.

Atuo em comunidades carentes, e vejo de perto do que são capazes jovens que não tem limites impostos pelos pais, e também não tem leis severas em caso de o mesmo vir a cometer algum delito.

Sejamos menos hipocritas, qual a necessidade de uma criança de 14 anos estar na rua após as 22:00h desacompanhada?
Teoricamente, essa criança tem q estudar, e se a mesma fica na rua até as 23:30h (jogando baixo, porque não é dificil ver crianças de 14, 15 anos as 3 da manhã perambulando e atormentando motoristas nos sinais) ela vai chegar em casa, e vai levar um tempo até pegar no sono, ou seja, até as 00:30h ainda estará acordada provavelmente.
Isso é saudavel para um adolescente em desenvolvimento? Até onde eu estudei não!

É uma medida punitiva e autoritarista? SIM. Assim como pagar impostos também é, e nem por isso damos chiliques, pois são leis que visam o bem maior da população.



Olhar só para o proprio umbigo é egoísta e pode ser um tanto tendencioso!

Eder Lima disse...

Luca.
Sua crítica não só é completa como muito atual e acredito que ponderada.

Eu não tenho filhos, mas entendo que uma atitude como a proibição da permanência nas ruas por menores não somente é um absurdo, como um crime contra o cidadão de bem.

Instituir o toque de recolher para o menor de idade constitui um corte no direito de ir e vir do cidadão.

Além disso, impedir que menores permaneçam nas ruas subentendendo que isso diminuirá a criminalidade e os acidentes de trânsito nada mais é que premeditar que todo cidadão dessa idade é um criminoso em potencial, poderíamos então chamar isso de xenofobia.

Dizer e argumentar que tirar os menores das ruas vai diminuir a criminalidade e os acidentes nas ruas nada mais é colocar uma faixa vermelha nos braços dos mesmos onde podemos ler: "criminoso em potencial".

Precisamos sim de diminuição da criminalidade e dos incidentes envolvendo menores alcoolizados ou de posse de veículos.

Mas isso deve acontecer por meio de políticas públicas de melhoria do ensino, da melhoria da infra-estrutura da polícia, através de campanhas de concientização, da melhor oferta de educação e atividades sócio-educativas a esses jovens.
Precisamos de transporte coletivo seguro, para que eles possam ir a escola e claro, precisamos de professores bem qualificados e pagos que sintam prazer em ensinar os valores da vida em sociedade, enquanto eles leem livros de boa qualidade, atuais, sem demagogia ou hipocrisia, sentados em carteiras que não sejam precárias.

Além de precisarmos de motivação, de incentivo, precisamos manter válido o nosso direito - e de nossos filhos - de ir e vir.

Sou contra esse absurdo.
O que virá depois?
Grande abraço.