quinta-feira, 30 de julho de 2009

Dedos rijos

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Passo boa parte dos meus dias no meu pequeno ateliê, onde penso e escrevo. É aqui que estudo e faço as pesquisas para o meu trabalho. Daqui posso verificar que o Brasil foi transformado num país de delatores. O paraíso dos dedos-duros. É incrível, mas hoje em dia, existe disque-denúncia pra tudo, ou quase tudo. É só entrar na Internet ou pegar o telefone ou celular, sem se identificar, no maior sigilo e relatar os modos esquisitos da vizinha que leva jeito garota de programa ou do moço da padaria que tem gíria de traficante. O telefone chama duas ou três vezes e lá vem a voz robótica: “bem-vindo ao disque-denúncia da...” Parafraseando Bertolt Brecht, seria o caso de dizer “feliz o povo que não precisa de delatores.”

Mas o que mais assusta é que toda a idéia da denunciação desvairada se abriga nos salões luminosos das melhores intenções. Na minha infância a palavra para isso era alcagüete, que a gente deturpava singelamente pra “caguete”. Na década de 1960, notadamente depois do golpe militar de 1964, o termo passou a ser dedo-duro. Criou-se até o verbo dedurar, ou dedo-durar —os dicionários Aurélio e Houaiss registram as duas palavras.

A semente do dedurismo criou raízes na classe média que vê em cada cidadão pobre —ou com cara de pobre—, um bandido potencial querendo afanar suas posses e espalhou-se pelo Brasil inteiro. A informática, a eletrônica e a Internet proporcionaram ferramentas mais ágeis e eficazes aos dedos-duros.

Não existe, apesar de todo este empenho de denunciar, nada que indique a redução de estupros, agressões a mulheres, assaltos, assassinatos, pedofilia, corrupção etc. Talvez —quem sabe?—, se houvesse uma distribuição da renda um pouco menos perversa do que a que grassa no país do presidente Lula da Silva... Acabamos por desembocar na vertente político-empresarial do dedurismo atual, pois neste terreno o dedo acusador parece engessado, apontando, no adversário, no rival, no inimigo, falcatruas idênticas às que pratica o denunciador. Vide o que rola hoje no Senado da República.

Mas, atenção!, não confunda as coisas. Vigilância política, controle dos atos do dos políticos e governantes, exigência do respeito aos direitos do cidadão, não têm nada a ver com dedurismo. É outra coisa. Assim como a diferença que existe entre denunciar e delatar. Por maior que seja a satisfação ao ver um José Sarney defenestrado do Senado, pouco adianta se não estiver seguido de uma luta política contra a esculhambação que existe nas altas esferas de comando do Estado brasileiro.

Não disque denúncia! Mas grite a sua insatisfação, onde quer que seja. Faça um escarcéu na rua até a polícia chegar quando ver uma fila de aposentados sem atendimento porque falta remédio no posto de saúde ou quando a empresa que nos fornece água cobra preços escorchantes por um serviço malfeito. A figura do dedo-duro, delator, alcagüete, boca-mole, língua-solta etc., sempre foi considerada infame. O código moral do mundo do crime e dos agitadores políticos que vivem na clandestinidade, condena o delator com a morte.

Não somos um povo verdadeiramente moral, mas sim do jeitinho. A cultura do “os outros fazem, eu também posso” predomina. A antiga Lei de Gerson —aquela que determina que as pessoas devem sempre levar vantagem em tudo— vem sendo gradativamente substituída pela Lei de Jefferson, cujo mote é “se você está se sendo acusado, acuse; se alguém está querendo te atacar, ataque antes; se estão querendo te afogar, arraste junto quem você puder”.

Ou seja, qual será o ganho moral e cultural da onda denuncista que tomou conta do país? Em vez de lutar contra o câncer da corrupção, criando mecanismos radicais que previnem esse mal, será que não estamos fundando uma cultura denuncista —ou delatorista—, que, no fundo, é um faz-de-conta moral ou ético?

O denuncismo chegou a tal ponto que alguém criou um site que se chama simplesmente Disque-Denúncia, que, segundo eles mesmos, “foi fundado por cidadãos como você. Lideranças comunitárias e empresários que, em março de 1995, pensaram juntos em uma maneira de contribuir com as autoridades no combate e na prevenção da violência (...) Somos um grande aliado da polícia e do poder público. Quer dizer, institucionalizou-se o dedurismo.

Refletindo sobre tudo isso, pode-se levantar uma pergunta dilemática: que parte de responsabilidade temos no estado das coisas se, no menu do nosso dia-a-dia, o medo é um dos pratos de substância? Não somos como somos por acasos da fortuna. E já fomos o que há muito deixamos de ser. Estamos criando uma sociedade precaucionista, a forma mais covarde de dissimular o medo. Um medo causa

Quando uma sociedade que vive sob um governo dito "socialista" promove a delação como conduta, e consubstancia a infâmia num sistema sórdido, tal acontece porque ainda nos encontramos moralmente enfermos. Propõe-se em todos os cantos, agora com o suporte pesado da informática e da eletrônica, que as pessoas delatem, sugerindo-lhes que praticam uma ação moralizante quando se trata de procedimento desonroso. O Governo, —coadjuvado por ongs, empresas, sites da Internet—, incapaz de cortar pela raiz a corrupção, avilta a todos, ao acirrar à denúncia. E, ao incorrer no crime de corrupção moral, coloca-se na zona da delinquência que propugna punir.

O terror da fogueira, a purificação das almas, o preço da salvação com que as seitas religiosas clamam por dedos-duros colocou todos num lazareto espiritual. A violência e a corrupção infundem apreensão e susto. Não tanto quanto o dedo indicador do vizinho despeitado, do estudante frustrado, da amante abandonada. O que ocorre na “democracia" de hoje, notoriamente avariada, confunde-se com a indecência de um tempo em que, profusas vezes, permitimos que o mal se convertesse em fatalidade inelutável.

A democracia deve suscitar inquietações éticas nos cidadãos, nunca inspirá-los para cometimentos repugnantes. Com base no princípio da decência, a recusa à delação configura o mais nobre direito à desobediência. E o delator não passa de um vulgar canalha. Assim como quem fomenta e exalta o dedurismo. Dedo-duro é aquele que aponta para o que vê e acaba acertando no que não vê. E os disque-denúncia (e seus sucedâneos na Internet e na mídia) são a forma ultra-moderna desse dedurismo.

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