terça-feira, 23 de maio de 2006

O silêncio dos idiotas

Faz alguns anos —aconteceu em 2002 pra ser mais exato— meti lá numa outra publicação (de que não me recordo o nome) uma nota sobre política com o seguinte teor: “Mais calmas depois da defecção de André Puccinelli (o fato aconteceu quando o ex-prefeito desistiu da sua candidatura ao Governo do Estado), mas ainda perplexas, as forças conservadoras da política da guaicurúndia estão em busca de um substituto. Muita gente foi consultada, sondada: Marçal Filho, Marisa Serrano, Ramez Tebet, Juvêncio Fonseca, Lúdio Coelho, Waldemir Moka e até o indefectível ex-governador Pedro Pedrossian; muito papo, muita moagem, mas até agora nada decidido. Gente de dentro do grupo diz que o grande problema é a falta de recursos para tocar uma campanha eleitoral de grande porte. Com burras vazias é impossível tocar uma campanha nos dias que correm”.

Não é de ver que naquela época a palavra “defecção” criou maior rebuliço? Muita gente —algumas pessoas até letradas, lidas, tidas como cultas— leu ali defecação, termo que em português menos castiço pode significar, com o perdão da má palavra, cagada. E não compreendi porque as pessoas fizeram essa ligação de defecção com defecação. Isto é, essa gente entendeu que eu havia dito que o nobre (ex-)prefeito teria feito uma cagada ao desistir de candidatar-se ao Governo de Mato Grosso do Sul. E muitos, talvez apaixonados pelo mui honrado ex-prefeito de Campo Grande, sentiram-se ofendidos com o meu texto. Exceto o próprio André Puccinelli, que é um homem letrado, e certamente não fez tal ilação.

Fiquei pensando na santa ignorância de algumas pessoas. Palavras são feitas pra serem usadas. E entendidas por quem as conhece. Defecção significa apenas abandono de partido, opinião ou crença; deserção, apostasia, abjuração, segundo o Aurelião – e como tal deve ser entendida. Sugeri que pessoas procurassem um dicionário quando tivessem dúvidas com a acepção de palavras com as quais se deparam no dia-a-dia.

Mas teve mais: muita gente argumentou que eu teria de me preocupar com as semelhanças fonéticas, com a interpretação que as pessoas dariam ao que escrevo. Argumentação absurda essa, não? Escrever claramente em português já não é tarefa fácil, imagine o gentil leitor se a gente tiver de se preocupar com interpretações tortas e parecenças acústicas que alguns dão às palavras.

Quais são os limites da linguagem, quem os traça? O que o leitor vai pensar? Defecção não pode. Bunda não pode. E abundante? Pudibunda pode? E culatra? Talvez furibunda. Imagine-se você escrevendo palavras de uso comum como posta, costa, doceta, punceta, baralho, pacu, soda, tunda, moribunda, cacunda e outras, e tentando adivinhar como as pessoas vão ler e interpretar o que você redigiu. As dificuldades em escrever com certeza serão centuplicadas.

Qualquer um com um mínimo de conhecimento sabe que a linguagem —seja ela oral ou escrita, seja mímica ou semafórica— é um sistema de símbolos, signos ou signos-símbolos —um código, portanto— voluntariamente produzidos e convencionalmente aceitos, mediante o qual as pessoas se comunicam com seus semelhantes, expressando suas idéias, sentimentos ou desejos.

A linguagem ideal seria aquela em que cada palavra (significante) designasse ou apontasse apenas uma coisa, correspondesse a uma só idéia ou conceito, tivesse um só sentido (significado). Como isso não acontece em nenhuma língua conhecida, as palavras são, por natureza, enganosas, porque polissêmicas (olhe o dicionário aí, gente!) ou plurivalentes. Muitas constituem mesmo uma espécie de constelação semântica, como, por exemplo, ponto e linha, que têm mais de cem acepções. Portanto, é bobagem tentar ampliar esse universo de significados, de per si tão amplo.

Professor meu dos tempos de ginásio dizia que nós, seus alunos, devíamos temer a ignorância acima de tudo. Um outro perguntava: “Se não fosse a ignorância, o que seria dos dicionários?” Digo isso porque penso que quem tentou desvirtuar o sentido que dei ao termo defecção comportou-se como idiota e deveria ter ficado em silêncio —existe coisa mais apropriada que o silêncio de um idiota?


luca.maribondo@terra.com.br
www.campogrande.news.com.br/lucamaribondo

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