terça-feira, 9 de novembro de 2004

Capacidade de se indignar

Desvio de verbas, troca de favores entre atores públicos e privados, tráfico de influência como ramo profissional são fenômenos antigos não só no Brasil, mas em todos os Estados do mundo, até mesmo no chamado primeiro mundo. No passado, ao menos aqui no Brasil, eram tolerados, fazendo parte do jogo político. Os casos de corrupção tinham um certo valor de entretenimento para os mexericos e as maledicências nos bastidores do poder. Não eram considerados assunto político. Afinal, apontavam-se claudicâncias individuais, e a conclusão se restringia regularmente a apelos morais. De maneira geral, tudo isso acabava sendo tomado como ranço de revanchismo e de uma visão conservadora da política.
Em aparente desprezo por esse quadro pouco edificante, no Brasil os políticos de todos os níveis e de todos os matizes têm ignorado inteiramente o assunto da corrupção e não apresentam propostas concretas para combatê-la. Além de ser um problema moral (todo político – candidato ou no poder – se dirá contrário à corrupção: está para aparecer quem admita franca e abertamente ser a favor dela), a corrupção acontece por causa de falhas nos mecanismos de controle do Estado. O Legislativo não fiscaliza direito o executivo – apesar de contar com os Tribunais de Contas em todos os Estados e na União –, a Justiça tem tantas falhas que pouco funciona nesse tipo de caso – até porque há um enorme número de histórias de corrupção entre juízes –, muitas vezes os procedimentos administrativos parecem propositalmente montados para criar dificuldades e, assim, propiciar a oportunidade de se venderem facilidades. Vejam-se as compras governamentais.
Político, seja ele candidato ou tenho um cargo público, aprecia falar de educação, emprego, segurança, economia, saúde, saneamento. Estes de fato são assuntos que preocupam os cidadãos. Acontece que corrupção também preocupa, e os candidatos não percebem isso – ou fingem que não percebem. Acresce que todo real subtraído dos cofres públicos por conta da corrupção se reflete em redução da capacidade de investimento do Estado – e no seu custeio – e conseqüente prejuízo de programas sociais e econômicos.
Além do mais, a percepção internacional de que a corrupção é alta – e é mesmo! – no Brasil tem efeitos diretos sobre os investidores. Alta corrupção significa maiores custos e uma alta volatibilidade no planejamento, portanto uma menor propensão a investir. Numa época em que qualquer soluço de pesquisa eleitoral provoca ataques especulativos e incertezas (reais ou fabricadas, não importa), o anúncio, por qualquer candidato presidencial, de que efetuará um combate frontal à corrupção só poderá ter efeitos salutares. Contudo, não bastará apenas dizer que a corrupção é um mal. Disso todos sabem. É preciso muito mais em termos de combate à corrupção.
É claro que alguma coisa mudou nessa avaliação, porque nos últimos vinte anos o tema da corrupção ganhou um espaço enorme no debate político. De patinho feio, sempre suspeito de esconder uma inveja sobre os bem sucedidos, a acusação da corrupção passou por uma carreira exemplar. Hoje é sempre candidata a ocupar as manchetes de jornais. A corrupção se consolidou como tema digno do debate político e intelectual em vários países – inclusive por estas bandas. O que aconteceu nestas duas últimas décadas para justificar essa reviravolta? A resposta imediata poderia ser que escândalos aumentam a venda de jornais, marcam pontos na disputa pela audiência na mídia eletrônica. Estaria explicada a atenção que a mídia dá para as denúncias de escândalos.
E na mesma linha pode-se explicar a atenção que os partidos políticos dão para o tema da corrupção. Denúncias de corrupção tornaram-se hoje elemento de grande importante da disputa política. Carimbar o adversário de corrupto pode prejudicar mais a sua imagem do que caracterizá-lo como conservador, ineficiente ou autoritário. A desonestidade não é mais uma característica negligenciável. Ela pode anular ou pelo menos comprometer seriamente uma carreira política promissora. Adicionalmente, quem está à frente das denúncias leva o prêmio da aprovação popular.
Por que fatos que rendiam apenas anedotas em jantares, hoje provocam crises de governo e afetam bolsas de valores? Porque os cidadãos reagem de maneira tão indignada à falta de honestidade dos agentes do poder no trato da coisa pública? Um dos motivos pela nova sensibilidade em relação ao tema da corrupção está no seu apelo universal, atingindo os partidários das mais diversas idéias e correntes políticas – não importa a ideologia, todos são contra a corrupção, nem que seja da boca para fora. Por mais divididos que os partidos políticos e a opinião pública estejam em relação a assuntos como política de segurança, projetos de educação, propostas para a saúde pública, em relação ao tema da corrupção parece haver consenso: ela é inadmissível para qualquer proposta política séria. O tema da correção e da honorabilidade é precondição para o debate e a prática políticos.
Porém, se todos são contra a corrupção, porque ela persiste, não importando a ideologia dos detentores do poder? A resposta pode ser porque nas terras tupiniquins a corrupção seja epidêmica e tolerada por muitos setores. A profusão de expressões linguísticas, entre nós, revela a extensão da doença. Elas vão do chulo ao sofisticado. Aqui se fala abertamente em entregar o presentinho, dar bola, molhar a mão, dar o melzinho, fazer agrado, finalizar acerto, recolher taxa de emergência, providenciar gratificação, remunerar intermediação, arcar com os serviços de corretagem, contratar a advocacia administrativa e muitos outros. Estaria este país a merecer um dicionário brasileiro da corrupção? Claro que não!
Entretanto, a corrupção está aí, firme e forte. E começa nas eleições, quando o político é ainda candidato a alguma coisa, com as malfadadas compra de votos, com dinheiro ou mercadorias, principalmente alimentos. A luta contra a corrupção somente faz sentido para aqueles que apostam na democracia como forma de resolver os conflitos sociais. Considerar o debate sobre leis e normas de convivência uma fachada é uma forma de esvaziar a discussão sobre a corrupção. Do outro lado, a troca de favores e o enriquecimento ilícito contribuem para minar a legitimidade da democracia.
A importância que a corrupção ganhou nos últimos anos na escala de valores da opinião pública indica que os cidadãos não aprovam nenhuma destas duas atitudes. Somente quem tem alguma expectativa que as regras sejam feitas para valer se indigna com aquele que quebra estas regras.Talvez seja por este motivo que a indignação com os casos de corrupção seja uma postura cada vez mais presente nos Estados democráticos contemporâneos. Para vencer a corrupção existente, é preciso que os cidadãos jamais percam a capacidade de se indignar.
É preciso também vencer uma certa leniência com a corrupção que parece estar arraigada à cultura do brasileiro. Há ainda muita gente que parece invejar e até admirar a riqueza adquirida através da corrupção – seja no poder público seja na iniciativa privada. É preciso que todos se conscientizem que invejar os corruptos já meio caminho andado para se tornar um corrupto também. É necessário reparar bem se os constantes ataques de alguns à corrupção não vêm sempre com uma pontinha de inveja.
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