terça-feira, 25 de abril de 2017

O saque livre


Astúrio Monteiro de Lima*
Já no fim do século passado, o coronel João Ferreira Mascarenhas, mato-grossense-do-sul, sagrara-se como legítimo chefe regional dominando largamente a política sulina. Era um homem aparentemente calmo, atraente, cavalheiro e valoroso.
Cultivava, com elevado estilo, os sentimentos humanitários, por igual a pobres e ricos, gozando por isso mesmo da estima geral.
Até entre os seus adversários era considerado como uma pessoa digna de respeito, admiração e apreço.
Sendo um político leal, admitia que os chefes mais altos da política estadual se conduzissem com a mesma virtude que o inspirava.
Homem de boa-fé, custou a compreender que por várias vezes se enganara. Despercebidamente, servia de instrumento inadvertido da política premeditada de alguns políticos do Norte do Estado.
De tantos dissabores, amarguras e repetidas desilusões, passou a admitir a idéia da separação. Em consequência disso, começou a receber hostilidades: a princípio veladas, mas depois ostensivas, articuladas e muitas vezes até mesmo pelos chefes aos quais havia servido com dedicação.
Outros chefes regionais foram sendo criados e amparados pelos que dirigiam a política estadual, evidentemente, com a intenção malévola de destruir o incontestável prestígio do Cel. Mascarenhas.
Surgiram assim, entre os políticos do Sul, sérios desacordos muito bem articulados e premeditados pelos chefes do Norte.
Acossado por fatores vários e manobras adversas, o Cel. Jango Mascarenhas decidiu-se pela reação armada, como única solução para a sua sobrevivência política.
Não logrou alcançar o objetivo que colimava, sendo vencido pelas armas, o que o obrigou a emigrar para Assunción, capital do Paraguai.
Desamparado por todos os lados, seus amigos perseguidos e seus bens arrasados, aguardava, melancolicamente na capital paraguaia, uma vaza para intervir novamente nos acontecimentos de Mato Grosso.
Em Assunción manteve um pequeno jornal enquanto dispunha de algum recurso, cuja finalidade precípua era dar curso continuado às suas idéias e manter viva a chama idealista entre os seus companheiros.
Enquanto isto se passava, o governo tratava de consolidar a posição conquistada no Sul com a derrota e emigração de Jango Mascarenhas. Não teve, para tal, meias medidas: foi ao ápice das mistificações e engodos.
Tudo seria utilizado para atrair os homens remanescentes de João Ferreira Mascarenhas: requerimentos de terras em tramitação especial, nomeações de autoridades, convites para visitar a capital e dinheiro.
Todos os meios seriam lícitos e admissíveis. O que se tornava necessário, imprescindível mesmo, era o desmoronamento integral do poderio político de Jango Mascarenhas.
A terrível e constante opressão governamental fez com que Mascarenhas distorcesse suas primeiras intenções honestas e sinceras.
Quase inenarrável era a opressão governista contra os companheiros de Mascarenhas, anteriormente e longo tempo após a revolução.
Meu pai guardava carinhosamente um exemplar do antigo jornal que, em língua portuguesa, se editava no estrangeiro.
No referido exemplar, havia um artigo com um título por d mais sugestivo: "Dandá p'ra ganhar vintém..." que criticava, acerbamente, os governistas por se haverem atirado a outra tática pouco recomendável e infame: a do dinheiro —a pano solto— sem o mínimo pudor político.
O artigo, bem trabalhado e espirituoso, causou enorme sucesso na época, pois era lido até pelos ferrenhos adversários com grande hilariedade.
Muitos sofreram com a "ferrotoada" agudíssima...
Mas a verdade é que pouco a pouco o Cel. Jango Mascarenhas, desprovido já de recursos monetários, ficou cercado unicamente de meia dúzia de companheiros que se conservavam fiéis ao chefe impoluto e valoroso.
Desesperado, pobre, traído, profundamente desencantado com a maioria dos companheiros de armas e ideal revolucionário, resolveu dar outro rumo a sua conduta, atirando-se a uma posição puramente pessoal, sem mais medir consequências.
Dia e noite, então, num quase delírio, se pôs a aliciar elementos estrangeiros para uma invasão a Mato Grosso.
Dirigindo-se a Missiones (argentina e paraguaia), passou a arregimentar mercenários vindos dos dois lados.
Não dispondo mais de recursos, antes de passar a linha divisória, onde tinha um depósito de armamento, declarou aos seus comandados dentro daquela franqueza que lhe era tão peculiar:
— "Não poderei pagar-lhes os serviços que me vão prestar, mas vocês ficam autorizados a praticar o "saque livre" nos lugares que cruzarmos daqui para a frente."
Abramos aqui um parênteses nesta singela narrativa histórica, para que se esclareça o seguinte: muito do que há neste capítulo, foi-me relatado pelo ajudante de ordens do Cel. João Ferreira Mascarenhas, nessa revolução.
Este lúcido informante, que depois de velho, pobre e doente, parou alguns meses em minha fazenda, chamava-se Rufo Silvano da Silva, que se aliara à causa do coronel Mascarenhas e era nada mais nada menos, que o avô materno do Sr. Jânio da Silva Quadros, nosso ex-presidente.
Transposta a fronteira, começaram as depredações de toda ordem: incendiaram fazendas, saquearam casas, desatendiam famílias, tiroteavam fugitivos, intimidavam gente, enfim, praticavam todos os atos capazes de gerar o pânico na população.
Dessa feita, pelo que sei, o Cel. Mascarenhas colocou-se dentro de normas especiais criadas por ele, tendo feito o seguinte pronunciamento:
— "Serão meus companheiros os que me seguirem. Nada de companheiro para ficar em casa dormindo sobre bom travesseiro e comendo galinha com arroz. Temos que dormir na macega, travesseiro de serigote, comendo carne assada no espeto."
Assim contou-me o velho Rufo.
Esta maneira de conduzir a sua invasão, fê-lo perder mais companheiros brasileiros, e assim, desprovido de outras forças, com as quais lhe fosse possível distrair o inimigo que se organizou logo, restava, unicamente a seu favor, apenas a mobilidade da sua coluna.
Valeu-se desta estratégia. Entretanto, houve tempo suficiente para a conjunção das forças contrárias, que puderam fixá-lo numa área pequena, obrigando-o a aceitar o combate em lugar de sua escolha, a qual recaiu nas proximidades da fazenda "Esperança".
Colocou aí sua força em linha, entre dois capões fronteiros, tendo os flancos amparados pelos matos que guarneceu convenientemente.
Atacado por forças muito superiores, resistiu tanto quanto pôde. Por fim, esgotou-se-lhe a munição. Os seus homens, impotentes para dar continuidade à resistência, foram-se rendendo ao inimigo, que havendo desmantelado o centro da linha de Mascarenhas, passou a fazer sucessivas cargas de lança, com o que veio a sacrificar inúmeros homens do Cel. Jango Mascarenhas.
Vendo tudo perdido, Mascarenhas retirou-se com o seu ajudante de ordens e mais dois oficiais, porém sempre combatendo, até que, tomando posição conveniente, porém sempre combatendo, até que, tomando posição conveniente, autorizou aos seus comandados que se escapassem como lhes fosse permitido.
Ilustração: Otávio

Como um autêntico bravo, o Cel. Jango Mascarenhas continuou lutando.
Foi encurralado.
Vinte homens endoidecidos perseguiam-no desapiedadamente.
Matou um deles no entrevero, feriu gravemente mais dois.
Foi vítima de nova carga, quase um corpo a corpo. Não recuou. Era um gigante na porfia desigual.
Recebeu um balaço na cabeça. Caiu para um lado, para morrer minutos depois ante o respeito de todos.
Jango Mascarenhas, com todos os erros que cometeu, não deixa de ser um grande vulto da tradição libertária de nossa gente.
Foi bem, podemos afirmar, um bravo acima de tudo, másculo e gigante até na hora da morte.
Ao assumir a responsabilidade que lhe cabia, em verdade, nos erros que permitiu se praticassem em detrimento do seu passado de homem probo, nobre e cavalheiresco, levou mesmo assim o seu nome à posteridade, ficando no coração de todos como um exemplo dignificante.
*Este causo foi extraído (tal como está no original) do livro “Mato Grosso de outros tempos — Pioneiros e heróis”, de Astúrio Monteiro de Lima

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