Astúrio
Monteiro de Lima*
Já no fim do século passado, o
coronel João Ferreira Mascarenhas, mato-grossense-do-sul, sagrara-se como
legítimo chefe regional dominando largamente a política sulina. Era um homem
aparentemente calmo, atraente, cavalheiro e valoroso.
Cultivava, com elevado estilo,
os sentimentos humanitários, por igual a pobres e ricos, gozando por isso mesmo
da estima geral.
Até entre os seus adversários
era considerado como uma pessoa digna de respeito, admiração e apreço.
Sendo um político leal, admitia
que os chefes mais altos da política estadual se conduzissem com a mesma
virtude que o inspirava.
Homem de boa-fé, custou a
compreender que por várias vezes se enganara. Despercebidamente, servia de
instrumento inadvertido da política premeditada de alguns políticos do Norte do
Estado.
De tantos dissabores, amarguras
e repetidas desilusões, passou a admitir a idéia da separação. Em consequência
disso, começou a receber hostilidades: a princípio veladas, mas depois
ostensivas, articuladas e muitas vezes até mesmo pelos chefes aos quais havia
servido com dedicação.
Outros chefes regionais foram
sendo criados e amparados pelos que dirigiam a política estadual,
evidentemente, com a intenção malévola de destruir o incontestável prestígio do
Cel. Mascarenhas.
Surgiram assim, entre os
políticos do Sul, sérios desacordos muito bem articulados e premeditados pelos
chefes do Norte.
Acossado por fatores vários e
manobras adversas, o Cel. Jango Mascarenhas decidiu-se pela reação armada, como
única solução para a sua sobrevivência política.
Não logrou alcançar o objetivo
que colimava, sendo vencido pelas armas, o que o obrigou a emigrar para
Assunción, capital do Paraguai.
Desamparado por todos os lados,
seus amigos perseguidos e seus bens arrasados, aguardava, melancolicamente na
capital paraguaia, uma vaza para intervir novamente nos acontecimentos de Mato
Grosso.
Em Assunción manteve um pequeno
jornal enquanto dispunha de algum recurso, cuja finalidade precípua era dar
curso continuado às suas idéias e manter viva a chama idealista entre os seus
companheiros.
Enquanto isto se passava, o
governo tratava de consolidar a posição conquistada no Sul com a derrota e
emigração de Jango Mascarenhas. Não teve, para tal, meias medidas: foi ao ápice
das mistificações e engodos.
Tudo seria utilizado para
atrair os homens remanescentes de João Ferreira Mascarenhas: requerimentos de
terras em tramitação especial, nomeações de autoridades, convites para visitar
a capital e dinheiro.
Todos os meios seriam lícitos e
admissíveis. O que se tornava necessário, imprescindível mesmo, era o
desmoronamento integral do poderio político de Jango Mascarenhas.
A terrível e constante opressão
governamental fez com que Mascarenhas distorcesse suas primeiras intenções
honestas e sinceras.
Quase inenarrável era a
opressão governista contra os companheiros de Mascarenhas, anteriormente e
longo tempo após a revolução.
Meu pai guardava carinhosamente
um exemplar do antigo jornal que, em língua portuguesa, se editava no
estrangeiro.
No referido exemplar, havia um
artigo com um título por d mais sugestivo: "Dandá p'ra ganhar vintém..."
que criticava, acerbamente, os governistas por se haverem atirado a outra
tática pouco recomendável e infame: a do dinheiro —a pano solto— sem o mínimo
pudor político.
O artigo, bem trabalhado e
espirituoso, causou enorme sucesso na época, pois era lido até pelos ferrenhos adversários
com grande hilariedade.
Muitos sofreram com a
"ferrotoada" agudíssima...
Mas a verdade é que pouco a
pouco o Cel. Jango Mascarenhas, desprovido já de recursos monetários, ficou
cercado unicamente de meia dúzia de companheiros que se conservavam fiéis ao
chefe impoluto e valoroso.
Desesperado, pobre, traído,
profundamente desencantado com a maioria dos companheiros de armas e ideal
revolucionário, resolveu dar outro rumo a sua conduta, atirando-se a uma
posição puramente pessoal, sem mais medir consequências.
Dia e noite, então, num quase
delírio, se pôs a aliciar elementos estrangeiros para uma invasão a Mato
Grosso.
Dirigindo-se a Missiones (argentina e paraguaia),
passou a arregimentar mercenários vindos dos dois lados.
Não dispondo mais de recursos,
antes de passar a linha divisória, onde tinha um depósito de armamento,
declarou aos seus comandados dentro daquela franqueza que lhe era tão peculiar:
— "Não poderei pagar-lhes
os serviços que me vão prestar, mas vocês ficam autorizados a praticar o
"saque livre" nos lugares que cruzarmos daqui para a frente."
Abramos aqui um parênteses
nesta singela narrativa histórica, para que se esclareça o seguinte: muito do
que há neste capítulo, foi-me relatado pelo ajudante de ordens do Cel. João
Ferreira Mascarenhas, nessa revolução.
Este lúcido informante, que
depois de velho, pobre e doente, parou alguns meses em minha fazenda, chamava-se
Rufo Silvano da Silva, que se aliara à causa do coronel Mascarenhas e era nada
mais nada menos, que o avô materno do Sr. Jânio da Silva Quadros, nosso
ex-presidente.
Transposta a fronteira,
começaram as depredações de toda ordem: incendiaram fazendas, saquearam casas,
desatendiam famílias, tiroteavam fugitivos, intimidavam gente, enfim,
praticavam todos os atos capazes de gerar o pânico na população.
Dessa feita, pelo que sei, o
Cel. Mascarenhas colocou-se dentro de normas especiais criadas por ele, tendo
feito o seguinte pronunciamento:
— "Serão meus companheiros
os que me seguirem. Nada de companheiro para ficar em casa dormindo sobre bom
travesseiro e comendo galinha com arroz. Temos que dormir na macega,
travesseiro de serigote, comendo carne assada no espeto."
Assim contou-me o velho Rufo.
Esta maneira de conduzir a sua
invasão, fê-lo perder mais companheiros brasileiros, e assim, desprovido de
outras forças, com as quais lhe fosse possível distrair o inimigo que se organizou
logo, restava, unicamente a seu favor, apenas a mobilidade da sua coluna.
Valeu-se desta estratégia.
Entretanto, houve tempo suficiente para a conjunção das forças contrárias, que
puderam fixá-lo numa área pequena, obrigando-o a aceitar o combate em lugar de
sua escolha, a qual recaiu nas proximidades da fazenda "Esperança".
Colocou aí sua força em linha,
entre dois capões fronteiros, tendo os flancos amparados pelos matos que
guarneceu convenientemente.
Atacado por forças muito
superiores, resistiu tanto quanto pôde. Por fim, esgotou-se-lhe a munição. Os
seus homens, impotentes para dar continuidade à resistência, foram-se rendendo
ao inimigo, que havendo desmantelado o centro da linha de Mascarenhas, passou a
fazer sucessivas cargas de lança, com o que veio a sacrificar inúmeros homens
do Cel. Jango Mascarenhas.
Vendo tudo perdido, Mascarenhas
retirou-se com o seu ajudante de ordens e mais dois oficiais, porém sempre
combatendo, até que, tomando posição conveniente, porém sempre combatendo, até
que, tomando posição conveniente, autorizou aos seus comandados que se
escapassem como lhes fosse permitido.
Ilustração: Otávio |
Como um autêntico bravo, o Cel.
Jango Mascarenhas continuou lutando.
Foi encurralado.
Vinte homens endoidecidos
perseguiam-no desapiedadamente.
Matou um deles no entrevero,
feriu gravemente mais dois.
Foi vítima de nova carga, quase
um corpo a corpo. Não recuou. Era um gigante na porfia desigual.
Recebeu um balaço na cabeça.
Caiu para um lado, para morrer minutos depois ante o respeito de todos.
Jango Mascarenhas, com todos os
erros que cometeu, não deixa de ser um grande vulto da tradição libertária de
nossa gente.
Foi bem, podemos afirmar, um
bravo acima de tudo, másculo e gigante até na hora da morte.
Ao assumir a responsabilidade
que lhe cabia, em verdade, nos erros que permitiu se praticassem em detrimento
do seu passado de homem probo, nobre e cavalheiresco, levou mesmo assim o seu
nome à posteridade, ficando no coração de todos como um exemplo dignificante.
*Este causo foi extraído (tal como está no original) do livro “Mato Grosso de outros tempos — Pioneiros e
heróis”, de Astúrio Monteiro de Lima
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